Sinopse: Eles estavam atrás de mim. Não apenas por uma hora ou duas horas, na verdade, eles estavam atrás de mim o tempo todo. E não apenas atrás de mim, eles apareciam por todos os lados. E tudo bem quando eu estava em casa ou sozinho em algum outro lugar, mas eles não tinham escrúpulos sobre tempo e espaço para aparecerem. Isso me deixava maluco. Como quando eles resolvem dar às caras dentro da lanchonete ou até mesmo durante as minhas aulas. A minha capacidade de ignorá-los melhorou muito com o passar dos anos, mas isso não conta quando eles resolvem te chutar ou até mesmo fazer qualquer contato físico com você. Porque sim, eles podem. Pelo menos comigo.
Desde que me entendo por gente eu consigo vê-los. E não apenas vê-los. Consigo cheirá-los, senti-los, tocá-los, como se fossem um outro ser humano. Não me admira o rótulo de esquisito que me foi posto pelos outros. Mas como lidar quando ambos os seres, vivos e mortos, conseguem te tocar e falar como todas as outras pessoas?
Gênero: Drama, Romance, Suspense, Ficção
Classificação: 16 anos
Restrição: Baseada no BTS, mas pode ser lidar com quaisquer grupos. Fora você e os meninos, os demais personagens são fixos.
Beta: Alex Russo
Eles estavam atrás de mim. Não apenas por uma hora ou duas horas, na verdade, eles estavam atrás de mim o tempo todo. E não apenas atrás de mim, eles apareciam por todos os lados. E tudo bem quando eu estava em casa ou sozinho em algum outro lugar, mas eles não tinham escrúpulos sobre tempo e espaço para aparecerem. Isso me deixava maluco. Como quando eles resolvem dar às caras dentro da lanchonete ou até mesmo durante as minhas aulas. A minha capacidade de ignorá-los melhorou muito com o passar dos anos, mas isso não conta quando eles resolvem te chutar ou até mesmo fazer qualquer contato físico com você. Porque sim, eles podem. Pelo menos comigo.
Desde que me entendo por gente eu consigo vê-los. E não apenas vê-los. Consigo cheirá-los, senti-los, tocá-los, como se fossem um outro ser humano. Não me admira o rótulo de esquisito que me foi posto pelos outros. Mas como lidar quando ambos os seres, vivos e mortos, conseguem te tocar e falar?
Por sorte, diferenciá-los nunca foi problema pra mim. Sendo redundante, os mortos tem uma aura… Bem… Mórbida. Eles andam pela multidão o tempo todo, são muito pálidos e quase sempre parecem estar perdidos. Um fantasma novato é o que há de mais simples a reconhecer: eles têm muita dificuldade em aceitar que estão mortos e conseguem ser bastante escandalosos ao gritarem aos quatro ventos, perguntando a todos por que não conseguem vê-los. Estes são os maiores perturbadores.
Basicamente, os mortos costumavam vir à mim para resolverem suas pendências aqui na Terra. Se isso soar como algo legal, procure um médico. Não há nada mais incômodo do que um fantasma te seguindo o tempo inteiro para que você possa levar um pedido de desculpas à um membro da família que fica à duas cidades de distância, ou simplesmente para entregar seu amado cão à um abrigo de qualidade. Sem contar nas vezes que uma adolescente que morreu sem nunca ter ido à um encontro resolve usar você de cobaia.
Eu nunca considerei tal habilidade como um dom. Muito pelo contrário, ajudar fantasmas só me dava dor de cabeça e cada vez mais distanciamento social. Meu melhor amigo, , é o único remanescente na minha vida que parece não se importar de ter um amigo que fala sozinho diversas vezes e vive desaparecendo sem mais nem menos. Nos conhecemos no ensino médio e ingressamos na mesma universidade, o que foi um alívio porque fazer novos amigos nunca esteve em nenhum tópico da minha lista de conquistas. Fora o , as únicas pessoas vivas com quem eu mantinha contatos recorrentes eram meus pais, Jane e… minha vó. Ok, talvez esta última não esteja mais viva.
Eu estava no quinto semestre de Medicina na Columbia University. A escolha do curso e da universidade tinham motivos plausíveis, ao menos para mim. Minha meta de especialização era acabar na Oncologia, o que me traria pacientes que esperariam pela morte e eu poderia, de algum jeito, incitá-los a resolverem suas pendências ainda em vida, já que visavam a morte iminente. Poderia ser egoísta, mas era menos um morto que voltaria para me pedir ajuda depois. A escolha de NY também não foi por acaso. Uma cidade grande poderia esconder talentos, e dentre estes talentos eu quero dizer pessoas como eu. Eu não entendia bem como a seleção de mortos acontecia para nós, mas eu torcia para que eles sejam bem distribuídos de acordo com o número de pessoas disponíveis. Era mais um plano para mantê-los longe.
A faculdade de Medicina deixava meus pais felizes, ao menos. Desde que eles me buscaram no Orfanato Melbourne, eu tenho sido motivo de orgulho em praticamente todas as minhas ações, mesmo quando meus desaparecimentos e surtos de rebeldias aconteciam frequentemente. Ou mesmo quando tive que ser buscado na delegacia diversas vezes entre o ensino fundamental e médio, com as acusações variando entre invasão de domicílio e desacato à autoridade. Mesmo nas situações difíceis em que eu era posto por causa dos mortos, eles dificilmente me davam uma crítica dura. Minha mãe chorava no travesseiro à noite, assim como eu sabia que meu pai bebia seu whisky mais do que o normal quando esses eventos aconteciam, o que me fazia pensar se eles se arrependiam de alguma forma por ter colocado um garoto estranho dentro de suas próprias casas. Na verdade eles se sentiam frustrados por não conseguirem a comunicação desejada comigo, o que admito também ser culpa minha.
A família era dona de uma companhia de advocacia bastante rentável em São Francisco. O nome do meu pai, Ryan , era creditado e citado em várias entregas de prêmios empresariais por toda a Califórnia, e era exemplo de gestão em vários outros estados. Os flashs dos eventos de gala, jantares executivos na sala e pessoas estranhas trocando minhas roupas me lembravam do legítimo sentimento de peixe fora d’água. A única solução para dar fim à exposição do único filho da família , era me tornar um gênio que deveria estar sempre estudando e se esforçando para a próxima prova ou um novo prêmio da feira de ciências.
Não deu outra, meus pais passaram a aceitar de bom grado que seu filho tinha outros interesses. Apesar disso, foi difícil convencê-los a me deixarem estudar do outro lado do país, e ouvi os choros da minha mãe por semanas, mas por fim eles concordaram, junto com a promessa de que me visitariam regularmente e que eu deveria ligar sempre. Isso também fazia parte do plano, visto que é difícil seus pais se frustrarem com suas atitudes estando tão longe.
Apesar de minha constante negação, meus pais insistiram que eu não fosse parar em um dormitório da universidade cheio de pessoas estranhas e com intenções desconhecidas. Guiados pela super proteção da minha mãe, eu residia em um apartamento bem localizado em Manhattan, no quinto andar e com janelas imensas do chão ao teto que me concediam uma vista panorâmica da cidade que nunca dorme. Tudo havia sido escolhido à dedo pela Sra. e eu não me atrevia a palpitar. Apesar de todo o esforço exagerado, eu gostava do meu próprio canto e, sem ignorar meu problema com os mortos, aquela foi a melhor decisão que deixei que tomassem por mim.
Em mais uma quinta feira, eu saía da biblioteca enquanto atendia uma chamada de no telefone.
— O que é dessa vez? — falei enquanto posicionava o celular no ombro e terminava de guardar os livros.
— Onde você está? Eu tô morrendo de fome e você ainda não deu o ar da graça pro almoço, e hoje tem aquela carne de…
— Você não tem membros ou dinheiro? Caso tenha membros, acho que você pode comer sem mim.
— Qual é, , você sabe que minha grana foi reduzida à zero no Queens semana passada. Pode me dizer ao menos onde está?
— Bem aqui.
Ele estava de pé no meio do refeitório e pareceu feliz em me ver.
— Por que demorou tanto? Achei que você estava sem aula nesse horário — ele disse quando me aproximei.
— Estava na biblioteca, andei preparando um artigo novo.
— Ah é? Sobre o que é dessa vez? Bactérias que produzem plástico? — perguntou enquanto digitava no celular.
— Não, é só um artigo simples sobre saúde pública que eu espero conseguir publicar no Citizen. Agora vamos te alimentar.
Nós entramos na fila da lanchonete que hoje parecia mais cheia que o normal. O cardápio era carne bovina, um dos poucos que me animava a vir para o almoço. Para o , tudo que fosse comestível era aceitável.
— Você viu o ranking semestral que saiu hoje? Parabéns, ficou no top 5 de novo — disse sem tirar os olhos do celular e sem nenhum tom de surpresa. Eu apenas bufei em resposta.
Todo começo do semestre, a Columbia divulgava um ranking dos alunos que foram mais bem sucedidos de acordo com o semestre anterior. Havia um para cada departamento e um dos alunos em geral da universidade. Como eu faço parte dos cinco primeiros desde o primeiro semestre, aquilo não me pegava mais de surpresa e me senti cansado só de lembrar que dali há algumas horas eu receberia uma ligação de felicitação vindo dos meus pais.
Estar entre os cinco primeiros sempre foi motivo de bajulação entre meus colegas de classe e professores, por mais que eu não desse a mínima pra isso. Contudo, não foi de todo mal; meus artigos eram elogiados pelos professores mais renomados e o reitor até havia me chamado pra jantar. Meu desempenho era um exemplo para todos.
Enquanto estava concentrado em algo como uma rede social, um vento gélido arrepiou os cabelos da minha nuca. Antes que eu pudesse constatar, uma voz rouca surgiu em meu ouvido:
— Olá!
Continuei olhando para frente, apesar de saber que isso não funcionaria por muito tempo. Pude sentir que ela virou o rosto para os lados, perdida. Abri meu celular, fuçando qualquer coisa sem sentido, torcendo para que ela percebesse que ninguém podia vê-la e se mandasse dali. Não era uma boa hora para lidar com mortos.
Infelizmente, ela não só saiu do meu lado, como começou a tentar tocar em e em tudo que aparecesse à sua frente. Para elucidar, quando os mortos tocam as pessoas comuns, elas apenas sentem no máximo aquele arrepio e um momento frio que gela a espinha. Os humanos para os mortos não eram muito diferentes: ao tocá-los, era como se tocassem em uma massa cinzenta, derretida, escapando de suas mãos. Mas eram ótimos pegando objetos, meus hematomas comprovam isso.
Pessoas como eu conseguiam senti-los totalmente — e jamais me pergunte porquê. Isso tornava muito mais fácil para os mortos nos acharem e nos fazerem de gato e sapato para cumprirmos suas malditas pendências. E era por isso que eu estava apavorado com a ideia daquele fantasma resolver me tocar naquele momento.
Eu vi tremer com os calafrios que o toque do fantasma produzia nele, o que o fez reclamar do clima, mas novamente fingi que não estava vendo enquanto nos aproximávamos das bancadas. No momento seguinte, deu um passo à frente e eu o segui, mas o fantasma não se mexeu, o que fez com nossos braços roçassem um no outro por um breve segundo.
Como um amador, aquilo fez com que eu olhasse diretamente pra ela e desviar o olhar no mesmo segundo. Tarde demais. Senti as mãos dela agarrarem meu braço direito.
— Você pode me ver! Ei! Você consegue me ver, não é?
Balancei o braço para sinalizar que me soltasse, mas ela me ignorou. Fechei os olhos, nervoso, implorando pra que ela não fizesse um escândalo aqui.
— Por favor, você precisa me ajudar! Eu não sei o que aconteceu, eu… Ninguém me vê… Eu morri…
Os olhos dela pairavam em uma expressão entorpecida, ela parecia lamentável. Virei os olhos para observá-la e vi uma menina de uns vinte e tantos anos, os cabelos ruivos desgrenhados, pálida como um papel. Ela usava um moletom com o brasão da Columbia.
Eu não podia dar atenção a ela de forma alguma naquele momento, mas ela parecia que não me deixaria em paz. Sinalizei com a cabeça do jeito mais discreto que consegui para que ela desse o fora, mas infelizmente ela pareceu não apenas entender o gesto como negar veemente segui-lo, mostrando isso agarrando meu braço com ainda mais força.
— Por favor, eu te imploro, me ajuda! Você precisa me dizer o que aconteceu, eu estava no meu dormitório, e de repente… — ela pausou sua fala, os olhos tão arregalados que já estavam me deixando em pânico. Ela parecia que iria surtar a qualquer momento.
A fila avançava, e ela não soltava o meu braço de forma alguma. Respirei fundo, tentando pensar rápido em como resolveria a situação. As pessoas ao meu redor riam e conversavam, não fazendo ideia do que estava acontecendo ali; mas se ela resolvesse pirar, eles iriam saber, de uma forma ou de outra. Ela agora cravava as unhas em minha pele, com uma força que eu sabia que era adquirida pelos mortos porque eles não eram mais… bem, humanos. Suas súplicas enchiam os meus ouvidos e mesmo minha comunicação pelo olhar não estavam adiantando.
— Agora não… — sussurrei o mais baixo que consegui, sem olhá-la, e agradeci por ninguém ter notado, tamanha era a falação do ambiente. Mas isso pareceu ter piorado a situação.
Vendo que eu realmente podia vê-la e ouvi-la, suas unhas cravaram tão fundo em minha pele que senti o sangue dar as caras e fui puxado como um boneco para o lado direito, bem onde havia pessoas com suas bandejas após pegarem a comida. O próximo cenário que vi foi minha roupa encharcada com o que parecia ser suco de laranja e meus joelhos batendo no chão, seguido de um grito agudo de uma garota que caiu à minha frente, com a mistura da comida que caiu sem dó em sua camisa e calça.
Todos os olhos presentes se viraram para a cena. estava estático, e vi em seu rosto que ele não sabia se ria ou se ajudava. Eu me sentia surpreso e ao mesmo tempo puto, e imediatamente virei os olhos para procurar a maldita que havia causado isso, mas ela havia desaparecido.
Senti um empurrão no meu peito e caí pro lado, voltando à realidade caótica.
— Você é maluco? — a garota à minha frente gritou, tentando se levantar sem escorregar nos restos de macarrão e torta de legumes destruídos — Você tem noção do que fez? Não acredito…
Ela bufava, indignada, e algumas garotas se aproximaram dela com guardanapos, todas olhando pra mim com um misto de choque e desprezo. Me levantei do chão rápido, torcendo pra que as pessoas seguissem suas vidas e esquecessem o show.
— Me desculpa, foi totalmente minha culpa — na verdade não foi — Eu te pago um outro almoço, como…
— Você é epilético? Como me atingiu dessa forma? Foi de propósito? — o tom de voz dela aumentava a cada pergunta, e suas bochechas estavam levemente vermelhas. Ótimo, tudo que eu precisava agora era de problemas com terceiros por causa dos mortos em plena universidade, o lugar onde eu havia feito todo o possível para ser uma zona quase intacta dos meus problemas extracurriculares.
— Claro que não! Eu já disse, eu sinto muito, eu posso te pagar o almoço, me deixa só…
— Não quero saber do seu dinheiro, imbecil. Tenho uma apresentação muito importante hoje e ela pode ter sido arruinada pela sua síndrome de Tourette. Portanto, se eu puder não te ver nunca mais na minha vida já é ganhar na loteria. Agora sai da minha frente.
Ela bateu no meu ombro ao sair e foi seguida por pelo menos três garotas, estas com olhares menos assassinos e posturas menos avantajadas. Fiquei em choque por pelo menos um segundo, até as funcionárias da limpeza me tirarem do local com comida destroçada por toda parte. Olhei em volta pela primeira vez e me senti como se estivesse nu, com tantos olhares direcionados a mim. Senti meu ombro sendo puxado em direção à saída e eu agradeci internamente, percebendo que minha fome já havia ido pro ralo àquela altura.
— Cara… o que foi aquilo? — perguntou quando chegamos ao banheiro do dormitório onde ele morava. Estava vazio, o que me deu a chance de arrancar a camisa e jogá-la na pia, bufando de tensão.
— Eu não sei, não foi de propósito… Acho que eu escorreguei.
— O que? Escorregou, tá doido? O chão estava tão limpo que eu poderia lambê-lo. Não tinha nada pra você escorregar.
É, só havia um fantasma.
— Eu não sei, acho que apenas me distraí — dei de ombros, torcendo para que esquecesse essa situação tão rápido como quanto aconteceu — Anda, me empresta uma camisa porque ainda tenho duas aulas depois do almoço.
— Cara, você tá legal? Não tá tomando nenhum desses remédios malucos pra ajudar na concentração, né? Essas coisas são perigosas, mano. E que negócio é esse no seu braço, tá sangrando…
— Até parece, não é nada, deve ter sido por causa da queda — dei uma risada e arranquei meu braço de sua vista enquanto abria o pequeno armário dele, pegando a primeira camisa preta que estava semi pendurada em um cabide — Estou perfeitamente saudável, foi apenas um pequeno acidente.
— Você tem ideia em quem resolveu causar um pequeno acidente? — ele perguntou e eu fiquei calado — Cara! Aquela era !
— Esse nome deveria significar alguma coisa pra mim?
— Já te falei dela algumas vezes, das vezes que vi ela e as amigas no Square’s, às vezes no Queens, do Jimin…
— Ah… Claro — O único momento em que não falava de mulheres era quando estava comendo ou jogando, então eu aceitei em meu íntimo que jamais gravaria qualquer uma delas porque havia seriamente coisas mais importantes a me preocupar — Espero que pelo menos ela esqueça disso tudo muito depressa.
— Eu torço por isso, cara. Essas pessoas do Jornalismo não são de esquecer algo fácil, lembro de uma garota que eu peguei do departamento…
Como um botão em meu corpo, apertei no desligar e deixei que as palavras de não fossem absorvidas pelo meu cérebro. De repente me lembrei do fantasma e de que ela me procuraria de novo. Isso era certo. Assim como sua roupa entregava que ela era aluna da Columbia e havia morrido há pouco tempo, a notícia se espalharia pelo campus mais cedo ou mais tarde. Dessa vez eu estaria preparado, e torcia para que seu problema fosse apenas uma carta ou um abraço. Terminei de vestir a camiseta de , limpei o que deu da minha mochila e fui para a aula.
As próximas três horas passaram voando, mesmo eu tendo que me concentrar mais que o normal para não pensar na aparição repentina que poderia acontecer. Era fim de tarde e os ventos de outono já começavam a ser sentidos, o que me lembrava do casaco que havia deixado no banco do carona. Sem poder adiar mais o problema, dispensei o professor de Histologia que insistia em comentar sobre minha última análise das lâminas da aula anterior e fui andando à passos largos para o estacionamento, que ficava em um grande pavilhão coberto na parte de trás da universidade.
O sol ficava cada vez mais apagado e as luzes do estacionamento ainda não estavam acesas, o que me garantia um momento a sós na escuridão que se formava. Havia estacionado meu Jeep Renegade atrás de uma pilastra e não havia outros carros por perto, pelo menos por enquanto. Fechei a porta do motorista ao entrar e esperei.
Dois minutos depois o ar pesou, gélido e macabro por dentro do veículo.
— Tá legal, quem diabos é você?
Ela parecia menos desesperada do que mais cedo, com os olhos menos perdidos, mas ainda confusa.
— Eu… Você está realmente me vendo? O que…
— Ok, vamos pular a parte óbvia da coisa. Eu te vejo, eu te sinto, como ficou bem claro mais cedo, e você está morta. O que posso fazer por você?
— Morta? Mas como… — seu rosto começou a enrugar-se em um choro — Como isso aconteceu? Eu estava apenas…
— Olha só, preciso que me conte exatamente o que se lembra. Ainda dá tempo de participar de uma confraternização no outro lado, então preciso que você se lembre porque ainda não foi pra lá.
Era nesses momentos que meu esforço ia na tentativa de juntar toda a compaixão e paciência que eu poderia reunir. A última coisa que eu queria era perder horas com um fantasma que não sabia, bem, que estava morto.
— Ash, ele apenas… Ele disse que as pílulas eram pra dormir, eu estava muito estressada com o projeto de finalização do curso, com o trabalho, então eu tomei. Acabei adormecendo, eu… Foi isso.
Os olhos dela eram vazios enquanto tentavam se lembrar de tudo.
— Quem é Ash?
— Um cara do departamento de ciências da saúde… Ele cursa Farmácia, eu acho. Não sei muita coisa sobre ele, e esse nem é seu nome verdadeiro. Estávamos saindo há duas semanas, ele me vendeu uns remédios pra dormir…
— Que remédios?
— Não consigo me lembrar, ele me entregou em uma caixa sem nome.
Revirei os olhos, prevendo o caminho que viria pela frente.
— Escuta, qual é o seu nome?
— Me chamo Margot. Margot Abbott.
— É o seguinte, Margot, eu sinto te dizer que você de fato morreu, e esses remédios que você tomou parecem ser a causa. Agora o que te falta saber para enfim atravessar o limbo…
— Mas eu nem tomei tantos assim. Ele me disse para tomar apenas três comprimidos, e que isso bastaria para que eu dormisse por um dia inteiro. Ele disse… — ela havia recomeçado a chorar, dessa vez mais alto — Eu confiei nele. Ele disse que não me faria mal.
Suspirei, cavando até o fundo dos meus sentimentos para tentar resolver aquela situação. Talvez não seria tão fácil quanto eu pensava.
— Tudo bem, o que você quer? Vingança? Podemos discutir os termos.
— O que? Não. Eu só… Estou confusa. Eu havia planejado tudo, meu emprego em Wall Street, meu apartamento em Manhattan, apresentar Ash pros meus pais…
— Ei, não é hora de pensar nessas coisas. Você precisa se concentrar para o que ainda está fazendo aqui, e o que precisa resolver para alcançar o tal paraíso, então precisa me ajudar. O que mais poderia prendê-la nesse mundo?
— Eu não sei. Eu passei a vida toda estudando e não fui a uma festa de fraternidade sequer. Fui beijada apenas uma vez no ensino fundamental e agora por Ash e nunca fiquei de porre, ainda sou virgem…
— Vai sonhando, garota! — falei mais alto do que pretendia e visualizei uma pessoa passando em silêncio alguns metros a frente do meu carro, e aquele olhar que me lançou com certeza confirmou que ela me achava maluco — Meu contrato não inclui participar de orgias ou reencenar American Pie, então eu sugiro que você pense melhor.
— Não é isso! Preciso achar o Ash, preciso saber o que tomei… Preciso saber como exatamente morri — ela suspirou, e balançou a cabeça como se sentisse dores — Ele é um cara popular, frequenta as festas e vende outros produtos. Tenho certeza de que não vai ser difícil encontrá-lo. Preciso saber se foi ele que me matou… — a voz dela falhou.
— Ei, ei, vamos com calma. Você parece ter morrido há pouco tempo, com certeza já estão sabendo da sua morte. Quanto à causa, autópsias servem pra isso. Tudo vai ser divulgado, Ash ficará sabendo. Estamos entendidos?
— Não — ela balançou a cabeça — Preciso saber o que era aquilo. Preciso saber se ele sabia o que estava me dando, só assim posso ficar tranquila.
Ela enterrou o rosto entre as mãos e os ombros se mexeram para recomeçar mais uma crise de choro. A luz forte do meu telefone piscou e vibrou com uma mensagem de , chegando uma após a outra. Para me distrair um pouco de Margot, li as mensagens que apareciam no visor: “Onde você está?”, “Estacionamento, não é?”, “NÃO OUSE TER IDO EMBORA SEM ME DAR CARONA”, “Me deixe na Park Avenue”, “TÁ AÍ????”, “VOCÊ NÃO ACREDITA NO QUE ACABEI DE SABER”…
Mesmo que eu não respondesse, estaria no estacionamento de um jeito ou de outro e isso significava que eu teria que me livrar de Margot naquele instante.
— Tudo bem, eu vou procurar esse tal de Ash e me certificar de saber o que ele te vendeu, e se sabia o que estava vendendo. Agora você precisa sumir do meu carro.
— Mas… Qual é o seu nome?
— , muito prazer. Agora… — apontei para a porta do carona.
— — ela repetiu meu nome e deu um sorriso pela primeira vez — Você parece ser um cara legal, . Eu confio em você pra me ajudar. E… Sinto muito pelo seu braço. Muito obrigada.
Ela evaporou na mesma hora que as luzes do estacionamento finalmente se acenderam e o topo da cabeça de surgiu no meio dos carros, correndo mais do que o normal.
Não demorou para que ele me avistasse já que eu normalmente estacionava no mesmo lugar. Ele entrou ofegante, com as mãos no peito, e abriu a janela.
— Cara… tem um cigarro?
— O que aconteceu? O prédio não é tão longe — respondi enquanto fuçava meu porta luvas e tirava um maço, entregando-o em seguida — Você precisa parar de fumar.
— Como você conseguiu parar? — ele respondeu enquanto pegava um isqueiro no bolso da frente da mochila.
— Não parei — dei de ombros, acendendo um maço e tragando logo em seguida. A nicotina tirava todo meu estresse recém passado com Margot.
voltou a falar depois de respirar algumas vezes.
— Cara, você não vai acreditar. Uma garota foi encontrada morta no dormitório feminino, parece que ela morreu hoje, um pouco antes do almoço. Está uma loucura lá dentro…
— É mesmo? Quem é a garota? — tentei reunir todo o interesse que podia fingir.
— Uma tal de Margot, ela cursava Direito… Cara, você tinha que ouvir o que disseram sobre como ela estava. Um horror. Parece que ela teve uma overdose, então tem vômito pra todo lado, ela está roxa, os olhos estavam abertos — ele tremeu por uns instantes — Um filme de terror. Nem imagino como a pessoa que a encontrou ficou…
— Uma overdose? — perguntei, tentando acumular o máximo de informações possíveis — Eles disseram que foi isso?
— Ah, eles ainda não sabem de nada, a ambulância acabou de buscar o corpo. Eles devem examiná-la no Hospital Universitário, a universidade fez questão de não causar alarde enquanto eles resolviam isso. Mas já é um dos assuntos mais comentados do twitter, também publicaram no fórum…
Enquanto falava, eu tentava encaixar as peças. Provavelmente Margot havia tomado os remédios na noite de ontem e morreu um pouco antes do almoço, e as pessoas alegavam que parecia ter sido overdose, mas ela não havia tomado pílulas o suficiente para isso. Tentei expulsar da minha mente o quanto tudo aquilo parecia estranho e pensar apenas em bolar uma trilha onde eu encontrava com Ash e o fazia me falar de alguma forma se sabia que o produto que havia vendido para Margot podia matá-la. Não que perguntar de frente resolveria alguma coisa, no mínimo ele me acharia maluco. Tentaria pensar em algo assim que possível.
Deixei na Park Avenue, a umas quadras da onde uma tal Emma morava, não fazendo qualquer esforço para lembrar de mais informação do que isso. dizia estar muito apavorado para voltar ao dormitório naquela noite. Se ele soubesse que eu havia sido informado do incidente pela própria vítima, ele estaria mais traumatizado.
Minha rua estava calma e quieta naquela noite, o que era comum numa quinta considerando que eu morava em uma área residencial sem muitos universitários. A vida badalada de NY começava cedo, e, mesmo sem eu ter conhecimento do cronograma geral da cidade, teria de dar um jeito de me enturmar, mesmo que temporariamente, para achar Ash.
Mesmo na era digital, é difícil achar uma pessoa que é conhecida sob um nome falso. Margot não havia me dado muitos detalhes sobre o cara, e eu não tinha qualquer interesse em encontrá-la antes de obter a informação que ela desejava. Poderia perguntar ao , mas eu tinha grande receio por sua boca ser maior do que o próprio rosto, e pretendia levar esse caso com a máxima discrição possível.
Ao chegar em casa, limpei o pequeno ferimento em forma de pequenas luas vindas das unhas de Margot no meu braço e tomei um banho. Entrei no fórum pela primeira vez e me informei sobre o caso daquela tarde, mas não havia nada de muito relevante; ela tinha sido encontrada pela colega de quarto, uma garota chamada Naomi Bailey que cursava Arquitetura. A única foto publicada era do corpo de Margot envolto em um saco preto e uma enorme faixa amarela atravessando a porta do dormitório. No final da matéria, havia um comunicado que dizia que a autópsia só ocorreria depois de uma autorização por escrito dos pais de Margot, que haviam sido avisados imediatamente e iriam tentar se deslocar o mais rápido possível à NY. Isso poderia atrasar ainda mais os meus planos de me livrar dela, por isso as soluções que me surgiam não eram nada confortáveis.
Eu estava realmente preocupado que não conseguisse encontrar a biblioteca nem mesmo com o Google Maps. Sua demora demonstrava isso, e seu histórico de ser um dos poucos alunos que ainda não havia pisado na biblioteca também.
Depois de meia hora, vi ele entrar meio perdido pela porta da frente e olhar para os lados. Acenei do fundo do salão e ele foi se aproximando mais rápido à medida que me viu.
— E aí, cara? O que houve? — falou especialmente alto enquanto afastava a cadeira à minha frente e recebemos a primeira advertência das pessoas com um “shh” bem agressivo e eu me perguntei porque diabos havia marcado de encontrar com logo em uma biblioteca — Foi mal — ele sussurrou para nossos vizinhos mais à frente — Galera bem nervosinha…
— O pessoal da computação não costuma visitar esse espaço da universidade, não é mesmo?
— Ei, esse negócio de livros é coisa do passado, isso aqui é mórbido, cara — ele olhou em volta com uma expressão de desprezo — Mas e aí, o que tá pegando? Tá quase na hora do almoço, quer ir ao Amadeus? O cardápio de hoje não está dos melhores… Ei, cara, sua roupa…
— Vamos sair na sexta à noite.
piscou duas vezes.
— O que?
Abri o banner de divulgação da festa que havia visto mais cedo no prédio do Citizen no computador e virei para .
— A festa no Gibbon’s? Cara, essa é uma das maiores fraternidades do lado leste! Não acredito — ele soltou uma risada, o que nos rendeu uma segunda advertência — Foi mal — ele sussurrou mais uma vez, mas não parou de sorrir — Você tá legal, ? Por que de repente você quer virar um universitário?
— Não sei, de repente quero ir nessa — dei de ombros, agindo com indiferença — Vai dar bastante gente?
— Oh, pode apostar que sim! A festa no Gibbon’s não decepciona nunca, e dessa vez eu posso ir sem os fracassados do meu departamento. Cara, preciso postar isso… — ele pegou o celular e começou a digitar sem fim.
— Não precisa publicar qualquer coisinha, infeliz digital. Que exagero…
— Não é qualquer coisinha! Olha a situação, vai à uma festa, meus amigos! Finalmente vai dar às caras!
— Prefiro que você pare de falar como se fosse um grande evento. E é claro, não poste nada! Já ouviu falar em invasão de privacidade?
— Você sabe o que é, grande gênio? Não se faça de inocente, você é a celebridade sem rosto, o seu nome é o primeiro no fórum, se liga! E o melhor de tudo: as pessoas não vão se decepcionar quando te virem, com certeza — ele soltou mais uma risada enquanto digitava.
— Mas o que… — franzi as sobrancelhas, surpreso com as informações.
parou de digitar e olhou pra mim, arregalando os olhos ao ver que eu estava realmente confuso com tudo que ele estava despejando pra cima de mim. Eu achei que era apenas uma festa.
— Cara, tá falando sério? — ele suspirou — Você não pode esperar que as pessoas vão passar batido pelo aluno número um. Elas vão se surpreender em saber que você não é um nerd esquisito acneico, na verdade, você não é tão desagradável de se olhar, as garotas vão cair pra cima de você, então pode se preparar. Talvez sobre algumas pra mim…
— Esse não é exatamente meu objetivo…
— Isso não importa, meu amigo, apenas vai acontecer.
— Se você diz — dei de ombros, e fechei meu computador — Agora, vamos almoçar. E, sim, vamos no Amadeus.
deu um gritinho animado, o que fez com que recebêssemos a última advertência antes de sairmos da biblioteca.
foi o nome que usei no e-mail enviado para Ash. A falta da minha criatividade poderia ser evidente, mas eu jamais poderia usar meu nome verdadeiro lidando com aquele tipo de situação onde eu poderia ser exposto — e até pior do que isso. Foi fácil me comunicar com ele: usando o drama de estudante esgotado física e emocionalmente, eu obtive até uma resposta bem rápida. Por um momento pensei em solicitar o conhecimento de e pedir que rastreasse o IP do computador ou da onde quer que seja que aquele e-mail estava sendo enviado, mas duvidei na mesma hora que seria tão fácil assim. Pelos motivos de: a) não tem como um cara que comanda um esquema daquele tamanho, reconhecido em todo o campus ser tão descuidado com os negócios; b) faria perguntas que eu não queria responder; c) não me deixaria em paz até que eu o respondesse, e isso acarretaria uma série de traumas nele e consequentemente a perda do meu melhor amigo.
Decidi levar as coisas da forma tradicional. Segundo as palavras de Ash, era para nos encontrarmos às 01:00 — da manhã — no terceiro quarto à esquerda durante a festa na Gibbons que continuaria suas festividades hoje também. A ideia de ter que voltar ao mesmo lugar onde eu havia praticamente fugido ontem não me era agradável, mas pretendia acabar com tudo aquilo hoje mesmo.
Se eu não soubesse que fantasmas geralmente ficam presos aos locais onde morreram, também ficaria pilhado com a possibilidade de Margot aparecer também na minha casa. Não que ela não pudesse fazer — ela apenas não deveria saber como. O som estridente do meu interfone tocou e eu sabia quem era pelo ritmo das badaladas.
— Cara! — gritou ao entrar pela porta do apartamento e se jogando no sofá retrátil — Você não vai acreditar onde eu estava…
— Então não precisa contar — me levantei e fui pra cozinha — Tá com fome?
— Claro! — ele suspirou, como se eu tivesse feito uma pergunta óbvia — E sim, eu posso dizer oficialmente que você é um ótimo amigo! Eu já posso riscar o ménage da lista de coisas pra fazer antes de morrer.
— Mas achei que tinham quatro garotas.
— Uma delas estava mais interessada nas outras do que em mim, então fica quieto e apenas considere como um típico ménage.
Eu ri enquanto terminava os sanduíches e os colocava na bancada da cozinha. levantou do sofá e se sentou à minha frente.
— Mas e aí, cara, você sumiu — ele disse enquanto mastigava — Procurei você que nem doido depois e meu celular havia acabado a bateria, sorte que as garotas me levaram pra casa — ele sorriu.
— Ah, eu estava cansado.
— Mas e a Becca? De longe, ela era a mais gata das quatro, você tinha tudo pra se dar bem com ela.
— Sei lá… — dei de ombros — Não rolou.
— Isso é por causa da Jane?
— O que? — eu ri sem graça — Como a Jane veio parar nessa conversa?
— Eu não sei, ela é a única garota que preenche a parte sexual da sua vida.
— Ei, ela é só uma amiga, tá bom? Não faz sentido você mencioná-la nesse caso, eu só não quis ficar com a Becca…
— Amigos que transam? — levantou uma sobrancelha enquanto passava mais pasta de amendoim no sanduíche — Onde você consegue amigas assim? Será que no “clube” onde ela trabalha existem mais “amigas” que ela possa me oferecer? — ele enfatizou as aspas com os dedos.
Balancei a cabeça e peguei meu sanduíche enquanto ia pra sala. Encerrar o assunto ignorando é uma das minhas maiores especialidades e ele já havia acostumado tanto com isso que não enchia mais o saco depois de perceber que eu não queria falar do assunto, ainda mais quando o assunto era Jane.
Para elucidar, Jane era minha única e melhor amiga, e sim, à primeira vista pode parecer que temos um relacionamento um pouco complexo. Nós nos conhecemos desde que me entendo por gente, dois órfãos no Orfanato Melbourne que gostavam de uma brincadeira muito peculiar: quem ajudava o Sr./Sra. Fantasma primeiro.
Sim, Jane era igual a mim.
De cara isso já se torna um dos principais motivos do porquê nós éramos amigos. Nos 23 anos da minha vida, eu jamais havia encontrado outra pessoa que conseguia enxergar os mortos e, por mais que eu sempre reclame dessa capacidade incômoda, era muito mais fácil lidar com ela com outra pessoa.
Jane jamais conseguiu ser adotada definitivamente. Eu sempre fui quieto e na minha e ela era desbocada, sem educação e bagunceira. O dia que meus pais foram me buscar, ela lançou uns bons xingamentos aos prantos para eles e até correu atrás do carro quando fomos embora. Aquela cena havia me deixado desolado por um bom tempo, mas eu sempre me lembrava que tínhamos prometido nunca deixar de ser amigos e sempre manter contato. Ela foi a primeira pessoa que realmente me interessou e me proporcionou uma das coisas que hoje eu considero valerem mais do que tudo: a oportunidade de ser você mesmo.
Nos anos posteriores, eu telefonava para o Orfanato diversas vezes, sempre perguntando de Jane. Estava louco pra contar à ela minhas novas experiências com os senhores fantasmas e também queria ouvir as dela. Várias vezes ouvi da Sra. Dundy que Jane havia fugido do lar temporário, brigado na escola e também tentado fugir do orfanato. Ela não era autorizada a ter um celular e desde então falei com ela poucas vezes até chegar ao ensino médio. Os primeiros anos sem Jane foram os mais difíceis, não ter com quem falar sobre um assunto tão particular que só nós compartilhávamos era estressante. Me sufocava tanto que eu automaticamente fui me fechando para tudo e todos, até para os meus pais, tentando reprimir todas as minhas experiências que nunca poderiam ser contadas livremente.
Depois que conheci no primeiro ano, toda essa pseudo solidão se atenuou. Ele é um cara muito despreocupado pra prestar atenção e se importar com todas as esquisitices que eu mostrava — como falar sozinho no vestiário da educação física ou saber que fui detido por invasão de domicílio. As perguntas dele surgiam, mas ele tinha a incrível capacidade de saber deixar pra lá e respeitar o meu espaço, não mudando absolutamente nada no relacionamento entre nós. Ele me lembrava um pouco a Jane, sobre o sentimento que eu tinha com ela, tirando a parte dos fantasmas, e isso atenuava cada vez mais o desconforto de não saber mais dela.
Foi então que um pouco antes da formatura do colegial, eu e acompanhados de mais dois garotos da nossa turma decidimos nos aventurar nas ruas de São Francisco após uma das últimas aulas extras e acabamos dentro de um clube de strip no norte da cidade. O clube estava parcialmente cheio e não deram a mínima pra adolescentes pré-formandos que só queriam se divertir antes de enfrentar a vida adulta — a prática de suborno também cai como uma luva nessas horas. Eu particularmente estava sendo levado para onde quer que eles fossem, visto que eu não era tão tolerante ao álcool e não estava nas melhores condições. Nós nos sentamos numa mesa esperando que o show começasse e de repente um holofote no palco refletiu a última pessoa que eu esperava ver: Jane.
Ela estava com os seios de fora e uma lingerie acompanhada de muito brilho e lantejoulas. Mesmo os vários anos que se passaram e seu rosto lotado de maquiagem, eu fui capaz de reconhecê-la como se ainda fosse no orfanato. Se não fosse a pouca luz do ambiente e meus amigos surtando, eles teriam notado meu choque.
Reencontrá-la naquela noite foi o pontapé da retomada oficial do nosso relacionamento. Desde então, ela me passou o número de seu celular e seu e-mail, como uma garantia que não perderíamos contato nunca mais. Passei aquela noite com Jane, e, segundo , foi quando eu provei que não era assexual. As coisas não foram premeditadas: ela havia me visto no meio da multidão no final de seu show e de repente já estávamos no calor do reencontro. Conversamos a noite inteira e eu soube de toda a sua história desde que havíamos perdido contato definitivo — desde a saída do orfanato aos 17 anos até os vários bicos e viagens até chegar onde estava. Aquilo não me incomodava nem um pouco. Jane era dois anos mais velha do que eu e sempre foi esperta e decidida, sempre fez o que queria fazer. O fato de ela dançar nua em um pole não mudava um terço do sentimento que eu tinha, pelo contrário, eu admirava o quanto ela era boa naquilo.
Sempre mantínhamos contato principalmente por e-mail, já que Jane alegava que vivia perdendo seu telefone. Há um ano ela havia se mudado para New Jersey, integrando em uma nova equipe de um clube mais requisitado e dizia estar ganhando mais — tanto amigos quanto dinheiro. Agora perto um do outro nós podíamos nos ver mais e vez ou outra ela me tirava de enrascadas com os mortos. Nós jantávamos juntos e eu valorizava cada segundo que eu podia passar sendo plenamente quem eu sou, sem segredos e pessoas prontas pra te colocar em uma camisa de força.
não entendia essa relação. Na verdade, poucas pessoas iriam entender julgando a situação com um olhar tão superficial. Eu e Jane tínhamos uma relação de carinho mútuo, e tudo bem que nas diversas noites de bebedeira e conversas paralelas eu acabava acordando com ela em meus braços, mas não conseguia rotular aquilo. Não me importava com esses acontecimentos, e aparentemente ela também não, mas não deixava de chamá-la de minha namorada.
Me sentei na escrivaninha do segundo quarto que eu usava de sala de estudos e lembrei de forma relâmpago do estudo dirigido que deveria entregar na próxima semana. Verifiquei meus e-mails e Jane ainda não havia respondido ao último que eu havia mandado, mas tinham apenas dois dias. Ela com certeza teria comentários sobre o caso de Margot. Eu pretendia não deixar nada pendente para conseguir resolver o caso na Gibbons.
— Ei, o que pretende fazer hoje? — perguntou entrando no cômodo e se jogando na poltrona embaixo da janela.
— Vou ao Gibbons de novo — respondi sem parar de digitar.
É incrível como consigo visualizar o choque na cara de mesmo sem olhar.
— O que?! — ele usou um tom de voz agudo — Espera… Como assim? Você se divertiu tanto assim ontem e eu não percebi?
— É… Foi mais legal do que eu pensei.
— Eu sei, mas… Foi TÃO legal assim?
— Sim. — dei de ombros — Espero que você possa me acompanhar de novo, se quiser.
levantou do sofá tão rápido que parecia ter sido alfinetado na bunda.
— Cara… Eu não sei o que você tá tomando esses dias, mas a resposta é sim, meu amigo, pra tudo que você quiser! Se eu faturar mais três essa noite eu posso ir pro Guiness, tá bom?!!
— Na verdade não…
— Cala a boca! Vamos vestir você pra que você esteja muito mais desejável hoje, as pessoas podem até querer tirar fotos, as meninas vão suar, se excitar…
— Ei, se controla! Se ficar muito afobado elas vão correr de você.
— Tudo bem, eu ainda terei você pra trazê-las de volta. — ele deu uma piscadinha e voltou a se sentar na poltrona, ligando seu celular.
Nunca levantem rápido depois de terem sidos atingidos em várias partes do corpo. A dor que provêm disso é horrível. Mas eu abri os olhos e me vi em um local que não era minha casa, então eu não pude me controlar.
Com a dor, fui obrigado a voltar a deitar. O ambiente estava escuro, mas com alguns feixes fracos de luz entrando pelas aberturas das persianas pelo ar condicionado ligado. Eu estava em uma maca no canto e sem camisa, com uma faixa enrolada pelo meu abdome. Olhei em volta e reconheci os outros três leitos dispostos pela sala, cada qual com as cortinas azuis abertas e uma poltrona preta característica à frente da mesa quadrada de madeira. Toda a lembrança da noite vieram à mente. Ela realmente havia me trazido à enfermaria do campus.
Me forcei a sentar novamente e a dor lancinante me fez ficar zonzo, mas eu não podia ficar ali por muito tempo — visto que eu não fazia ideia de como havia entrado. Com alguma dificuldade, consegui ficar de pé. Tentei prestar atenção no meu corpo nos mínimos detalhes, para me auto diagnosticar. Eu já respirava um pouco melhor, e aparentemente não tinha costelas quebradas. A contusão iria passar com o medicamento correto, mas eu ainda teria que ver um médico depois. Visualizei uma pequena pia no canto da sala com um espelho, e a imagem que eu vi me fez gemer de frustração.
Alguém havia limpado todo o sangue do meu rosto, então os estragos estavam bastante explícitos. Meu nariz parecia uma bola de tênis, a ponte levemente curvada para o lado e lá se foram as dúvidas se ele estava quebrado ou não. Havia um curativo torto que entregava que fora feito às pressas no lado esquerdo da testa, e um hematoma ainda vermelho no canto da boca. O nariz quebrado fazia meu rosto parecer pálido e, literalmente, doente. As marcas roxas já começavam a invadir a área abaixo dos meus olhos. Se não fosse por isso, talvez eu conseguisse disfarçar as demais fraturas. Infelizmente, aquilo teria de ser resolvido da única forma rápida e não recomendada que eu conhecia.
Respirei fundo e simplesmente fui. Gritei mais alto do que deveria quando ouvi o “slac” do osso voltando para o lugar, sem falar da dor.
— O que você está fazendo de pé?!
Ouvi a voz de entrando na sala e jamais imaginei como ficaria aliviado de escutá-la. Ela pegou por um dos meus braços e me guiou novamente até a maca, e agradeci internamente por isso porque se não eu já teria caído no chão de novo.
— Gelo… — murmurei, ainda com a mão no nariz que eu havia acabado de pôr no lugar.
Ela me olhou como se eu fosse louco após ver o que eu tinha feito, mas não disse nada. Me colocou de volta na maca e saiu quase correndo da sala, voltando em menos de cinco minutos com uma compressa improvisada feita com gaze. Ela tirou o casaco que estava usando e se sentou ao meu lado no leito, posicionando a compressa com cuidado no meu nariz.
Prestei atenção nela pela primeira vez. Ela tinha uma expressão exausta e seu vestido estava manchado de sangue, então ela ainda não havia ido pra casa. Olhei pelo canto do olho e vi que o casaco que ela havia tirado e pendurado na cadeira na verdade era meu.
Ela acabou seguindo o meu olhar e a senti corar levemente.
— Ah… Me desculpa, peguei ele emprestado pra ir na cafeteria. Espero que não se importe. — ela revirou os olhos e soltou a compressa em minhas mãos, me fazendo ver claramente as marcas vermelhas dos dedos de nos seus braços desnudos perto dos cotovelos.
— Você está bem? — perguntei tentando ser coerente por trás da compressa. Ela me olhou confusa e viu pra onde eu olhava.
— Ah… isso. Não é nada, eu estou bem. — ela respondeu não me convencendo — Você deve se preocupar com você. Nem imagina o quanto me assustou.
— O que aconteceu? — tirei a compressa — Como eu cheguei aqui?
— Bem… Você não quis ir a um hospital de jeito nenhum e falou da enfermaria antes de apagar. Nem sei como não surtei, mas consegui com que você se arrastasse até seu carro. As pessoas estavam bêbadas demais pra reparar em um cara inconsciente, sabe como é. E então chegamos até aqui.
— Você dirigiu o meu carro?
— Ah não, de jeito nenhum! Eu o levei até seu carro pra que fosse mais fácil pedir um táxi de lá. Relaxa, o motorista não era de fazer perguntas. Mas eu trouxe sua chave… — ela apontou rapidamente para sua bolsa.
Continuei olhando pra ela ainda confuso, me perguntando porque raios ela havia deixado meu carro para trás, na frente de uma fraternidade cheia de pessoas com grande potencial ao vandalismo.
— Eu já entendi o seu olhar — ela balançou a cabeça e riu sem graça — Bom, eu não dirijo.
— Ah — agora estava explicado — Você pareceu saber dirigir aquele dia com seu namorado bêbado.
— Não disse que não sei dirigir. Apenas não dirijo — ela deu de ombros — Pode ficar tranquilo que avisei uma amiga que estava na festa e ela ficou de vigiar o seu carro algumas vezes, apesar de isso ter gerado algumas perguntas que eu não soube responder, mas esse é o último dos problemas.
— Você não precisava ter feito isso.
— Ah, que isso, como eu disse, eu me propus a ajudar e não ia deixar de fazer isso por causa de obstáculos como mobilidade, então tá tudo certo.
— Não… Eu quis dizer isso — apontei para mim — Você não precisava ter se envolvido nisso, entendeu? Esse era um assunto que eu tinha que resolver sozinho, jamais carrego outras pessoas nos meus problemas.
— Ah… Entendi — ela me encarou enquanto acenava — Na verdade, mal pude acreditar quando te vi naquele quarto. Sabe, as pessoas que vão lá têm um certo objetivo, e eu não pensei que o fosse desse grupo de pessoas.
— Ah, você diz desse esquema de tráfico de medicamentos? — ela arregalou os olhos por um instante e automaticamente olhou para os lados — Relaxa, não é algo que eu queira me envolver.
— Como assim não quer se envolver? Quem marca um encontro com o Ash não quer fazer uma vistoria sem compromisso daquele quarto.
— É, eu imaginei — dei de ombros — Mas isso é um assunto meu, você não entenderia. Também não vou perguntar sobre o que você fazia lá. Acredite, você já ajudou bastante.
— Mas… Fiquei curiosa sobre as coisas que escutei lá. O lance da Margot e tudo mais. Não sabia que você também tinha um lance com ela, ela parecia bem apaixonada pelo Ash.
— Ah… Não. Você não entendeu. Eu jamais tive algo com a Margot, na verdade eu nem a conhe…
Parei por um instante porque a situação já estava dando merda. E então eu não soube explicar como de repente fiquei tão falante com essa garota, a ponto de quase me entregar. Claro que eu não iria oferecer de bandeja a história toda, mas eu não queria aguçar o sentido investigativo dela.
— Espera, o que? Você ia dizer que não a conhecia?
— Não é bem assim, nós só não éramos tão próximos como seu namorado pensou.
— Você sabia informações demais pra quem não era tão próximo dela.
— O que é isso agora? Tá me fazendo um interrogatório policial sem eu saber? Amanhã essa conversa vai estar no Fórum ou no jornal?
— Ei, ei, nós só estamos conversando, nem tudo aqui precisa ser tão preto no branco. Você só me deixou curiosa, só isso. Eu tenho acompanhado o caso da Margot desde o início e até agora não surgiu nenhuma nova informação, então você me intrigou com as coisas que disse.
— É, só que eu não posso te ajudar com isso. — me levantei novamente e comecei a procurar as minhas roupas.
— Você já vai? E o resto dos seus machucados? Eu te trouxe pra cá porque eu não iria discutir com um cara inconsciente, mas você precisa de um hospital urgente.
— Eu posso me cuidar, muito obrigado. Agora se você não se importa, preciso chamar um táxi pra ir buscar meu carro.
— Ei, cara — ela entrou na minha frente e colocou a mão no meu peito — É sério, eu realmente não quero me meter nos seus problemas malucos porque já percebi o quanto você é um. Mas você não pode sair desse jeito.
— Você saiu desse jeito — dei de ombros, apontando para a parte mediana do vestido suja de sangue.
— É, ok, o seu casaco ajudou. Mas a questão é que já amanheceu e vai ser bem estranho se alguém colocar a cabeça pra funcionar e tentar adivinhar o que aconteceu com a gente. Então eu tô pedindo encarecidamente pra você sentar por mais uns minutos nessa bendita cama até que eu traga umas roupas emprestadas clandestinamente no achados e perdidos e tomar o café que já deve estar frio. Portanto…
Ela nem me deu tempo de protestar e já foi saindo pela porta. Por um lado ela estava certa, não seria nada bom se o que aconteceu ontem fosse descoberto por pessoas de fora — e eu digo de tudo, incluindo a briga e tudo que resultou dela. Apesar de que impunha isso como uma ameaça velada, como se estivesse me aconselhando silenciosamente a manter minha boca fechada sobre isso, ou o querido namorado poderia fazer algo nada galanteador à meu respeito — e também ao dela, visto que havia o enfrentado de forma tão escancarada. Eu não tinha qualquer interesse em levar aquele assunto adiante. Meus problemas agora eram outros, e o principal deles era como eu iria resolver os problemas novos que surgiram da falha de resolução de um deles.
voltou depois de um tempo, já vestida com uma camisa meia manga listrada e um macacão branco e me jogou um jeans e uma camiseta nova. Sem dizer uma palavra, começou a recolher as roupas manchadas e a enfiá-las em uma sacola de pano da enfermaria.
— Vou lá fora tentar apagar mais alguns rastros da nossa presença aqui enquanto você troca de roupa — ela recolheu mais alguns itens em cima da mesinha ao lado da maca, que só agora percebi como estava bagunçada.
— Você fez o curativo? — perguntei.
— Ah… Sim. Nada ao nível da medicina, mas o Google era o único professor disponível, então espero que não se importe. Estava sangrando tanto que eu achei que você fosse literalmente morrer, e eu não queria mais esse trauma.
— Claro.
Fui até a bolsa de e vi café e água dentro de uma sacola de padaria. Peguei a água imediatamente e percebi o quanto estava com sede, e exausto. Depois de alguns minutos ela saiu e eu troquei de roupa, um jeans simples e uma camiseta preta. Coloquei as outras na sacola que ela havia separado para mim e saí da enfermaria, encontrando-a encostada na parede enquanto olhava o teto.
Assim que me viu, ela remexeu em sua bolsa e me entregou na mesma mão minha carteira, minhas chaves e meu celular.
— Tive que desligá-lo porque um tal de não parava de ligar. Acho melhor você acalmá-lo antes que ele enfarte.
— Mais tarde eu ligo. Valeu.
— Tá legal, é o seguinte, não é porque é domingo que o campus está fechado, o movimento de pessoas é bem baixo mas não é inexistente, então sugiro que a gente saia bem de fininho e separados pra não ter que rolar perguntas se formos vistos. Já foi bem difícil mexer meus pauzinhos pra enfiar a gente aqui de madrugada, não quero burocracia pra sair também.
— Ah… Tudo bem.
— Então… Eu já vou nessa. — ela acenou e deu as costas.
— , espera… — ela se virou novamente — Valeu por ter feito tudo isso. Como eu disse, você não precisava. Espero que isso fique entre nós, tudo bem?
Ela deu uma risada.
— Pode ficar tranquilo que ninguém vai saber que eu carreguei em um táxi até a enfermaria do campus. Se bem que daria uma ótima matéria pro jornal. — ela fez uma pausa — É brincadeira! Acredite, eu não quero ser relacionada à esse assunto em momento nenhum.
— Ótimo. Ficamos entendidos assim.
— É, ficamos — ela acenou e deu as costas para ir novamente, mas se virou mais uma vez — Mas sabe, , você realmente é uma peça mais estranha do que eu pensei. E tudo bem você ser assim, desde que não esbarre nas pessoas sempre como você faz. Mas uma coisa que eu não consigo sossegar foi o jeito que você falou da Margot, e acredite, eu não tô interessada em te chamar pra uma entrevista e nem nada disso. Mas eu sei que você sabe de alguma coisa. E essa matéria é muito importante pra mim, não que isso seja do seu interesse. Eu também sempre achei esse caso muito do suspeito e mal contado, e pra casos assim eles geralmente arquivam na pasta do suicídio, mas tem mais história nisso aí, eu sei que tem. E eu tô afim de descobrir. E você foi um dos responsáveis por me motivar a voltar a investigar isso, então na verdade eu que tenho que te agradecer.
— Espera aí, eu não pretendia…
— Adeus, sr. . — ela acenou com as mãos e saiu com pressa.
— Você não vai achar nada! — gritei, mas duvido que ela havia escutado.
Nunca havia ido ao campus fora dos horários letivos desde que cheguei em NY e de repente aqui estava eu, tentando burlar as normas pela segunda vez no mesmo dia. Sair não havia sido tão difícil; não havia problemas na movimentação de estudantes aos fins de semana, visto que a biblioteca, laboratórios, restaurantes e demais instalações com projetos ativos funcionavam normalmente. A enfermaria não era uma delas, o que me fez pensar em como havia me colocado lá dentro. Não apenas isso. Agora eu estava arrependido de não ter perguntado como raios ela havia conseguido entrar no prédio em plena madrugada — o que exatamente eu estava tentando fazer agora. Aparentemente, havia muitas coisas para ensinar.
Estacionei do outro lado da avenida, em frente ao enorme portão de grades pretas. Um único vigia noturno estava dentro da guarita ao lado do portão. Não parecia estar prestando muita atenção em intrusos, o que era ótimo para os meios não convencionais que eu pretendia usar.
Desci do carro e dei a volta nas grades principais. Em um ângulo de 180 graus, eu já estava bem longe da vista do vigia. As grades deviam ter uns 6 metros, mas continham várias linhas horizontais, facilitando minha entrada. Do outro lado, coloquei o capuz e comecei a caminhar com a cabeça baixa. As luzes estavam acesas por toda extensão do campus. Tive que me esquivar atrás de árvores e pilastras de pelo menos dois vigias que vagavam com lanternas; avistei as luzes acesas dos dormitórios e agradeci mentalmente pelo JJ’s não abrir aos domingos. Na direção de Morningside Heights, cruzei com algumas pessoas, estudantes voltando de uma social clandestina ao que parecia. Eu não era o único a vagar sem permissão aquela hora.
Cheguei ao John Jay Hall sem grande alarde. Eu tinha um certo conhecimento com fechaduras (e grampos), e agradeci em todas as línguas que conhecia por aquela ainda não ser a digital.
O John Jay Hall era um prédio de 15 andares na extremidade sudoeste do campus. Ali não apenas abrigava o JJ’s e algumas instalações de serviços de saúde, mas também alguns estudantes nos dormitórios. Inclusive . Pensando sobre isso, eu definitivamente não deveria estar aqui. Graças à ausência do JJ’s, ninguém estaria nos corredores naquela hora. Pelo menos era o que eu esperava. Lá dentro havia apenas uma iluminação baixa, quase inexistente. Eu não havia vindo preparado, então a lanterna do meu celular teria que bastar para que eu chegasse ao terceiro piso pelas escadas de emergência. De forma alguma poderia pensar em pegar o elevador.
O restaurante estava vazio e silencioso. Olhando-o dessa forma, parecia muito maior do que era normalmente, com a aglomeração de pessoas impedindo uma visão panorâmica do local. As mesas de madeiras vazias, os pilares também de madeira, o pé direito alto com o teto em mármore branco, os lustres espalhados pelo lugar totalmente apagados. Foi aqui que eu havia encontrado Margot pela primeira vez, naquela cena infame de queda. Hoje, se eu caísse, contava que pelo menos ninguém veria.
Não é que eu pudesse chamar os mortos a hora que eu quisesse. Mesmo se eu pudesse, isso seria algo que eu definitivamente nunca faria. E não era como se eles pudessem me encontrar onde quer que eu esteja. Se eu não soubesse que eles ficavam presos aos arredores de onde haviam morrido, ficaria preocupado de receber uma visita em minha casa, mas felizmente sabia que não era possível. Eles até poderiam, mas não sabiam como. Não haviam lembranças.
Em situações como aquela, bastava que eu chamasse seu nome. Sempre eficaz, não demorou muito para que ela se materializasse no escuro, pálida e com uma expressão confusa, como se ainda não entendesse muito bem como aquilo acontecia.
— , é você? — ela olhou para os lados — Está sozinho?
— Como vai, Margot?
— Estou ótima — ela abriu um sorriso, que logo desapareceu — Quer dizer, na medida do possível. Eu queria olhar os jogos de sinuca do JJ’s, mas eles estão fechados hoje. Muitos colegas meus jogavam ali…
— Escuta, vou ser breve — interrompi-a antes que começasse um monólogo — Precisamos conversar sobre Ash.
— Você o encontrou?
— Encontrei. Ele foi bem gentil — meu tom sarcástico fez com que ela inclinasse a cabeça curiosa. Em um piscar de olhos, ela estava próxima do meu rosto, quase encostando em meu nariz, e abaixou meu capuz.
— Meu Deus! — sua boca se abriu em choque enquanto ela dava um passo para trás — O que aconteceu com seu rosto? Você brigou com Ash?
— É, mais ou menos. Pode-se dizer que ele tem muitos amigos.
Ela abriu ainda mais a boca.
— Não acredito que ele mandou Dylan e Bruce fazerem isso! Eu devia imaginar que ele teria esse tipo de atitude… Nem sei o que dizer, … — ela respirou fundo, claramente indignada.
— Relaxa, não foi a primeira briga que eu me envolvi. Mesmo que essa tenha sido um trabalho em conjunto, eu já estou bem. O mais importante é que confrontei Ash, e devo dizer que ele negou a história toda.
— Negou?
— Ele disse que não te matou. E parecia estar dizendo a verdade.
Ela ficou em silêncio e andou um pouco em círculos. Pensei em mais alguma coisa para dizer, mas não havia nada. Ela deveria sumir agora, não é?
— Então… Agora está tudo bem? — perguntei após vários minutos de silêncio.
Ela parou de andar, mas ainda mantinha os olhos no chão.
— Isso não faz o menor sentido — murmurou em voz baixa. Ela levantou a cabeça e havia algo novo e estranho nos seus olhos: uma raiva que não estava ali antes — Têm que ter sido ele!
Engoli em seco. Aquilo não era um bom sinal.
— Margot, olha… Ash te vendeu Lorazepam. É um remédio forte para ansiedade, mas com três comprimidos você no máximo perderia suas aulas do dia seguinte. Na sua idade, uma overdose estava fora de cogitação. O que não deixa de ser uma irresponsabilidade tomá-lo, mas ele não te mataria.
— Ele pode ter alterado o medicamento. Sabia que Ash produz algumas de suas drogas? Deve ter feito esta especialmente pra mim… — sua boca se curvou em uma careta de choro, apesar de seu corpo tremer em raiva.
— Sendo racional, uma overdose só seria possível se você já estivesse sob efeito de outra droga antes de tomar o remédio. O seu corpo não aguentou.
Ela olhou para mim estupefata.
— O que você disse? — havia um vinco em sua testa. Pude ver que ela começou a dar passos em minha direção — Está dizendo que eu usei drogas naquele dia? — abri a boca para responder, mas ela foi mais rápida — Não que te interesse, mas eu nunca usei drogas. Aquela era a primeira vez que eu iria embarcar nessa. Se eu adivinhasse que nunca mais voltaria dessa maldita experiência, eu jamais teria aceitado, você me entendeu?!
Ela aumentou a voz na última frase, não que mais alguém pudesse ouvir. Sua raiva e frustração eram explícitas, ela não estava levando o assunto muito bem.
— Como você pode pensar isso de mim?! — ela continuou — Naomi me dizia que eu era sem graça por não ceder ao estilo de vida de Ash, mas eu não conseguia. Mesmo assim, eu sentia que nós… — ela respirou fundo, tentando não chorar — Ele negou completamente sua participação nisso tudo?! Eu devia saber que ele pularia fora de uma forma ou de outra!
O problema não eram os gritos e a expressão furiosa de Margot. O problema é que quando um fantasma resolvia se revoltar, eles não tinham muita pena do lugar ao redor — e nem das pessoas. Então quando algumas cadeiras voaram acima de mim e os vidros do salão começaram a balançar, eu notei que precisava tomar uma providência.
— Margot, se acalma…
— Me acalmar?! Eu fui ASSASSINADA, ! Eu tinha planos, tinha um futuro brilhante pela frente! E tudo isso foi tirado de mim da noite pro dia! Para as pessoas ainda pensarem que eu fiz isso comigo mesma — ela recomeçou a chorar, e isso fez com que os vidros tremessem com mais intensidade — O que meus pais devem estar pensando, toda a minha família na Virginia, devem estar decepcionados comigo…
— Tenho certeza que sua família também entendeu que você jamais faria isso.
— Mas eles não liberaram a autópsia, não é mesmo? Como era de se esperar! Minha mãe quer evitar a vergonha de ter uma filha que se drogou e não aguentou a pressão, que não soube ir em frente!
— Agora não é hora de se preocupar com o que sua mãe pensa ou deixa de pensar! Se você me disser exatamente o que aconteceu naquele dia, talvez possamos chegar a uma conclusão…
— Não está claro?! Ash fez isso comigo! Ele fez isso comigo! — uma cadeira da lateral do salão voou acima do chão e se espatifou no teto, e aquilo com certeza foi ouvido por toda a área do corredor — Ele vai me pagar, ele vai…
— Margot, se acalma! — falei entre dentes, olhando para trás em direção à porta de entrada. Alguém com certeza havia escutado — Por que Ash te mataria?! Você não me contou…
— Eu já te contei tudo, mas você não vai me ajudar! Ninguém vai me ajudar a fazer com que ele pague! Ele me avisou que seria assim, que você não estava do meu lado… — ela me encarou, o ódio escancarado em seu rosto — Eu mesma vou resolver essa história! — ela deu as costas para sair, mas a peguei pelo braço antes que ela fizesse isso.
— Do que está falando? Quem é ele? — ela me ignorou e tentou se soltar — Eu tô falando muito sério, Margot. Ou você se acalma e acaba com esse show, ou…
Eu não era tão ingênuo a ponto de pensar que ela me escutaria. Mas também não esperava que ela fosse me dar um empurrão e eu seria literalmente jogado pelos ares até bater na parede ao lado da porta de entrada do refeitório. A dor foi tamanha que eu tenho certeza que apaguei por três ou quatro segundos, mas quando abri meus olhos ela já havia desaparecido. Uma explosão do lado de fora, quebrando o restante dos vidros e janelas de pé e em seguida um apagão mostravam a extensão das atitudes de Margot: a energia já era.
As mesas antes perfeitamente enfileiradas agora estavam dispostas em uma confusão de balbúrdia. Uma das cadeiras havia ido parar janela afora, e outra estava pendurada no vidro da cozinha. Um dos lustres espatifou-se no chão. Agora literalmente o prédio inteiro estava um breu.
Xinguei-a mentalmente, e confesso que não esperava que as coisas fossem chegar àquele ponto. Essa era a bola de neve que eu tanto queria evitar. Margot havia desaparecido e do jeito que estava transtornada, eu tinha certeza que ela havia saído do prédio — e isso era a coisa mais perigosa que poderia acontecer com ela naquele estado. Felizmente, ela não conseguiria chegar à casa de Ash naquele dia, visto que suas memórias ainda deveriam estar turvas e ela precisaria de um tempo para se adequar lá fora. Infelizmente, agora Ash era um alvo e de fato estava em perigo.
Margot havia deixado o salão em caos, e não demoraria muito para que alunos e seguranças chegassem ali, e isso significava que eu tinha que sair dali o mais rápido possível. Me levantei com dificuldade e tentei ligar minha lanterna novamente, mas a queda havia deixado meu celular em frangalhos, e não sabia se ele funcionaria novamente. Completamente no escuro, tateei as paredes até achar a porta por onde havia entrado e ao tocar na maçaneta, um choque na minha testa fez com que eu fosse jogado novamente ao chão e gemer de dor. Avistei um fio de luz chegando perto de mim, que vinha da boca de uma lanterna e um rosto conhecido se ajoelhando ao meu lado.
— Não acredito. — gemi, tentando me levantar.
— Era só o que me faltava — bufou, sussurrando — Mas que raios você está fazendo aqui, garoto?
— Eu também deveria perguntar isso, você acabou de literalmente bater com a porta na minha cara.
— A minha bola de cristal quebrou, então foi difícil adivinhar que você estivesse aqui — ela revirou os olhos — Posso saber por que você está nesse breu parecendo um marginal e fazendo… — ela parou de falar assim que iluminou o restante do salão — Mas que merda aconteceu aqui?! Eu ouvi uns barulhos e vim…
— Não dá tempo de explicar, temos que sair daqui agora.
— Não é possível que você tenha feito tudo isso. Eu ouvi vozes antes de chegar, com quem você tava falando?
Antes de responder, ouvi passos correndo e mais feixes de luz porta afora.
— A gente precisa correr!
Antes que ela protestasse, peguei em sua mão e puxei-a porta afora, em direção contrária às escadas por onde eu havia subido — e por onde agora subia uma quantidade considerável de pessoas pela falta do elevador.
As escadas eram a única saída existente do prédio àquela altura. Se alguém nos visse naquela cena ao lado da destruição, não precisava pensar muito pra saber quais conclusões tirariam. Os dormitórios ficavam muitos andares acima, o que me dava tempo de abrir a segunda saída de emergência, ouvindo os gritos estarrecidos dos alunos ao longe. Desci os dois lances o mais rápido que consegui, estabilizando as costas na porta vermelha e tentando pensar o mais rápido que podia. Eu não sabia exatamente o que teria no corredor à minha frente, mas os guardas não iriam descansar agora que já haviam visto nossas silhuetas (e depois de verem a bagunça que estava no refeitório). Maldita Margot, que havia praticamente feito um convite à pessoas de fora com todo aquele circo.
Eu e não tínhamos muito pra onde correr. Àquela altura, os guardas já deveriam ter acionado mais colegas de trabalho e até mesmo a polícia, não por conta de dois penetras mas sim pelo vandalismo no refeitório — fora todo o desespero dos alunos que com certeza teorizavam um ataque terrorista. Eu precisava urgentemente lidar com aquela reviravolta.
— , o que está acontecendo? — sussurrou e pude ver que ela estava com medo — Foi você…
— Não, mas seria difícil explicar às pessoas caso elas nos pegassem.
O barulho de vozes na rádio patrulha ia ficando mais alto. Era questão de tempo até que eles chegassem àquela porta. Estávamos no térreo e mapeei a direção da entrada dos fundos por onde eu havia entrado. Não muito longe dela, havia uma sala estreita de almoxarifado com uma porta azul na frente. Poderia não ser uma ótima ideia. Eu contava com a aglomeração de pessoas estar reunida principalmente à frente do restaurante, três andares acima. Meu peito arfava e cada respiração eram como lascas de pedra nas minhas costelas, mas eu não podia descansar. Encostei na parede antes de entrar no corredor, e pude ouvir os passos dos guardas à pouco mais de 50 metros.
— … — respirava acelerado, ainda segurando minha mão — O que você tem na cabeça? Ainda não estou entendendo…
— Precisamos nos esconder. Se formos pegos aqui hoje vai ser um desastre, e eu vou precisar da sua ajuda pra isso.
Ela ficou em silêncio por alguns segundos antes de concordar. sabia perfeitamente que aquela era a verdade; e ela também estava envolvida.
— Vou colocar na sua conta — ela se endireitou, encostando na parede ao meu lado — O que você quer fazer?
— A gente precisa chegar ao almoxarifado.
— Sem chance, ele está trancado uma hora dessas.
— Isso não é problema.
Dessa vez eu não pude observar o olhar que ela me lançou — como se eu fosse louco — e rapidamente a puxei na primeira brecha que as vozes ficaram mais distantes. Andamos rápido, sem correr, rente à parede e abaixados para as luzes que vinham do pátio não correrem o risco de nos pegar e chegamos à pequena porta azul. De joelhos, puxei novamente o grampo do bolso e entreguei a lanterna à , que apontou para a fechadura enquanto eu fazia o trabalho de destrancá-la.
— Uau — ela disse assim que ouviu o clique — O que mais você esconde embaixo desse capuz?
— Vá por ali — uma voz não tão distante soou como se estivesse ao nosso lado, e de repente passos correndo pareciam vir em nossa direção.
Em um impulso, empurrei para dentro da sala e entrei logo em seguida, fechando a porta e apagando a lanterna mais rápido que consegui. Segundos depois, pelo menos quatro guardas passaram em frente à porta e de repente começaram a vasculhar o corredor à nossa frente minuciosamente. Olhei para e imediatamente tapei sua boca com minha mão ao ouvir sua respiração tão acelerada e alta, a ponto de surtar.
Havia uma pequena fresta de vidro em forma de quadrado na porta azul, não grande o suficiente para ver algo no escuro, mas se eles ficassem curiosos o suficiente a ponto de abrir a porta, não teríamos saída. Um suor escorreu pelo meu rosto ao ver uma lanterna passeando perto do vidro, e senti as mãos de pegarem com força em meu casaco. Ela estava com medo. Olhei em seus olhos, que estavam arregalados e visíveis mesmo no breu, e lhe lancei um olhar firme, tentando acalmá-la de alguma forma.
O feixe de luz parou por alguns segundos ao lado do vidro e se afastou depressa, junto com as vozes. Suspirei aliviado e soltei meus ombros, como se um caminhão tivesse saído das minhas costas. Tirei a mão da boca de e pela primeira vez reparei como estávamos grudados. Não que a sala desse vazão para que ficássemos muito mais longe do que aquilo — era um cubículo que já estava um pouco abarrotado pelas vassouras e produtos de limpeza. Mas ao ver que, sem o obstáculo da minha mão nossos narizes estavam quase se encostando, dei um passo pra trás, de repente constrangido pelo momento.
— Me desculpa — sussurrei, passando as mãos pelo cabelo.
— Que loucura — ela balançou a cabeça, ainda atônita com a situação — Quando vamos sair daqui?
— Quando eles derem uma brecha pra gente chegar até os fundos.
— Ah sim, Kim Possible. E quando seria isso? Você viu o estado do refeitório, daqui a pouco vamos ter que nos esconder da polícia, e não apenas dos vigias noturnos.
— Pois é, e se você resolver ajudar podemos fugir dos dois. — disse enquanto me abaixava para revirar umas caixas de papelão.
— O que você tá fazendo agora? Tem certeza que tá em condições de se mexer desse jeito?
— Esse é o menor dos meus problemas agora. — levantei e peguei um dos esfregões, quebrando a ponta pelo joelho e amarrando um pano branco em uma de suas extremidades.
— Tá legal, é sério, o que é isso? Não… Você poderia me dizer o que raios está fazendo aqui pra começo de conversa?
— E você? O que tá fazendo aqui? — me virei para ela.
— Vim ver uma amiga. — ela deu de ombros.
— Os dormitórios estão no oitavo piso, você deveria estar presa no elevador a essa hora.
— Não ando de elevadores. Pelo visto foi a coisa certa a se fazer.
— Não precisa inventar desculpas pra mim. O que há pra investigar aqui a essa hora?
Ela levantou as sobrancelhas surpresa, e uma vermelhidão aparentemente até no escuro mostrou que ela estava constrangida.
— Bem… De certa forma é um assunto confidencial, pra minha matéria. Não preciso te responder sobre isso, ao menos a minha vinda aqui não causou um crime ao patrimônio.
Revirei os olhos e voltei ao que estava fazendo. Achei um vidro de álcool na primeira prateleira, já que era algo que era bastante usado e estava sempre à vista, e despejei sobre o pano.
— Tá legal, o plano é o seguinte: um de nós vai jogar esse pedaço de madeira bem perto da porta de entrada e isso vai chamar a atenção dos guardas por perto. Enquanto eles se concentram nisso, nós corremos até o portão dos fundos e os guardas que estão lá já vão ter sido acionados pelos guardas daqui da frente, então vamos ter exatamente pouquíssimos segundos de brecha pra ir embora. Você me entendeu?
Ela me olhou chocada por alguns segundos, mas acenou. Procurei um isqueiro nos meus bolsos e bufei ao perceber que eu estava realmente seguindo aquela medida para parar de fumar. pareceu perceber o que eu procurava e sacou um isqueiro da bolsa, entregando-o pra mim. Automaticamente olhei em dúvida pra ela.
— O que? Eu sou precavida.
Acenei e me preparei pra ligar o fogo no pano, quando ela segurou minha mão.
— Deixa que eu faço.
— Ah… Não precisa, é melhor eu fazer.
— Quer parar de ser teimoso? Olha seu estado, você vai nos atrasar até chegarmos aos fundos. Pode me dar isso.
Ela agarrou o bastão de mim e abriu a porta devagar, me lançando um último olhar antes de correr para a direita. Sem perder tempo, corri para o lado contrário em direção aos fundos. Ouvi algumas vozes dos guardas do lado de fora gritando para prestarem atenção ao fogo, e visualizei a porta dos fundos por onde eu havia chegado. De repente eu parei, tomado por uma preocupação com que eu havia deixado para trás. Olhei para fora, onde de bem longe eu conseguia ver a silhueta das grades. Olhei para trás, sem nem sinal de e a sirene da polícia já podia ser escutada ao longe. Em um dilema como esse, eu precisava escolher o meu lado sem dúvidas. Se eu fosse pego no meio daquela confusão, as consequências seriam tamanhas que me dava até dor de cabeça. Eu mal poderia adivinhar a reação dos meus pais. O reitor me daria tantos pontos de demérito fossem necessários, isso se eu não fosse detido na delegacia mais próxima e tivesse que pagar uma fortuna de fiança, ou talvez fazer trabalhos voluntários durante toda a minha vida quem sabe. E não sei porque depois de citar exatamente todas as possibilidades de consequências que poderiam advir daquele evento, eu decidi voltar atrás pra buscar .
A minha perna já não estava funcionando muito bem, e a dor que eu sentia não me deixava pensar direito. Para minha sorte, andei alguns passos e avistei correndo com os olhos arregalados em minha direção. Sem dizer nada, ela agarrou meu braço e me puxou direto para a porta de saída, onde saímos pelo pátio extenso e nos embrenhando no escuro até o portão.
Tenho certeza que alguém nos viu. Jurei escutar um “Eles foram por ali” e uma lanterna pegar a ponta do meu capuz, o que me fez correr a plenos pulmões. Segui em direção á Riverside Dr, saindo de Morningside Heights, entrando em Washington Heights, próximo ao centro médico. Cheguei às grades mais afastadas do hospital, onde com certeza seríamos vistos. Meu carro deveria estar há pelo menos 1km de distância dali.
— Droga — ela murmurou olhando para o muro, e a vi tremendo um pouco.
— Está tudo bem? — perguntei, já posicionando meu pé nas linhas horizontais.
— Ah… Sim.
— Ei, olha pra mim — fiquei de frente pra ela, falando baixo — Eu vou primeiro e você vai atrás de mim, do outro lado eu te seguro. Ok?
Ela acenou, mas parecia nem estar respirando.
— Promete? — sua voz falhou e eu mal a escutei, mas acenei do mesmo jeito — Anda, eles estão chegando.
Consegui escalar o muro de 5 metros facilmente assim como na chegada, só que dessa vez tive que morder os lábios pra não gemer de dor. Ao chegar do outro lado, a bolsa de voou em minha direção e por pouco não a deixo cair; isso sinalizava que ela estava pronta para subir.
— Tenha cuidado — tentei falar o mais alto que a situação me permitia. Ela não respondeu e depois de alguns segundos escutei um grito agudo vindo do outro lado das grades e um estrondo no chão — ! , tá tudo bem? O que aconteceu? — ok, dessa vez eu gritei.
— Cala a boca! — ela gritou entre dentes — Eu estou bem! Foi só um mal jeito.
Depois de quase 3 minutos, a cabeça de apareceu no topo do muro onde ela de apoiava com o braço esquerdo, que estava sangrando na área do cotovelo. Como ela havia se machucado daquele jeito de uma distância tão pequena?
Estendi os braços, pronto para pegá-la, esperando que ela fosse cair objetivamente, mas ela simplesmente se desequilibrou ao tentar se sentar e caiu de qualquer jeito em cima de mim, que como não estava nas melhores condições, tentei segurá-la da melhor forma possível, mas quando me dei conta ela já estava em cima de mim e nós dois no chão.
— É sério… Você precisa parar de fazer isso — resmunguei, e fiquei extremamente nervoso ao perceber como eu sentia sua respiração pesada em minha boca. Por que ela sempre tinha que ficar tão perto de mim?
— Oh meu deus, me desculpa — ela rapidamente saiu de cima de mim, estendendo a mão para me ajudar a levantar. Reparei que um dos seus joelhos também estava sangrando.
— Você tá legal? — apontei para seus machucados.
— É, parece que sim. Só está um pouco dolorido, mas nada que um curativo não resolva.
As sirenes começaram ao longe com mais força e voltamos à realidade.
— O que a gente faz agora?
— Entra no carro! — falei e não dei tempo de ela protestar. Ela rapidamente abriu a porta do carona e dei a partida para finalmente sair dali.
Queria poder dizer que havia dormido bem, mas duas horas não é tempo suficiente pra isso. A imagem daquela aparição medonha não saía da minha cabeça e nunca desejei tanto ver minha vó. Ela poderia não ter as respostas, mas eu precisava saber que não estava louco. Também queria falar com Jane, mas hesitei com o pensamento de tirá-la de qualquer serviço que estivesse tendo no momento. O jeito foi ficar andando de um lado a outro tentando lembrar de qualquer referência sobre tudo que eu vivi até hoje com os mortos, e se eu pudesse ligá-las aquilo.
Mas não havia referência. Eu nunca havia presenciado tal coisa antes, e pensei bastante nisso. Na maioria das vezes, eu era procurado pelos fantasmas que haviam acabado de morrer, e geralmente tinham problemas bem simples, apesar de irritantes. Vez ou outra sempre tinham aqueles mais pirados, que já estavam aqui há um tempo, e mal se lembravam de sua própria identidade. Era com esses que eu havia ganhado grande parte das minhas cicatrizes e faziam minha mãe pensar que eu era completamente problemático.
Mas eu nunca, jamais havia visto um fantasma com aquela aura negra e perturbadora. Sua presença era tão esmagadora que eu ainda podia sentir minha garganta fechando, uma estranha sensação de estar sendo sufocado. Era algo sinistro.
E eu não sabia nada sobre isso. Tentei chamar minha vó dezenas de vezes, mas infelizmente quando eu mais precisava, ela nunca estava presente. A única coisa que eu tinha certeza absoluta era de que era o alvo daquela aparição estranha. Ele esteve presente naquela festa e estava presente no bar, e deveria estar presente agora mesmo ao lado dela enquanto ela dorme. Esses pensamentos me deixavam maluco de desespero. Aquilo definitivamente não era nenhum fantasminha protetor. Ele queria matá-la.
Pensei que ficando perto dela talvez eu pudesse decifrar melhor aquela coisa, e de quebra não deixar que morresse. No momento do impulso eu disse a ela que a ajudaria a investigar o caso de Margot, mas agora não sabia como contornar aquela situação. Em um final de semana, eu acumulei todos os problemas que evitei a vida inteira.
Antes de dormir, consegui ligar meu celular com algum custo e mandei uma mensagem para o número que havia anotado no post it. Era apenas um ponto de exclamação, mas eu sabia que ela iria entender. Desejei que ela fosse a primeira coisa que eu visse assim que abrisse os olhos, e por um momento esse pensamento me deixou ansioso.
A Columbia estava um caos àquela manhã. Haviam avisos por toda universidade e meu celular agora recebia notificações do fórum por causa do aplicativo que havia instalado nele. Todos se perguntavam como o refeitório do John Jay havia sido destruído na noite anterior justo em um momento de um baita pico de energia, onde as câmeras não puderam filmar nada. Aparentemente a polícia falaria com pelo menos umas vinte pessoas e, claro, teríamos de almoçar no JJ’s ou no Ferris Booth, já que havia uma enorme faixa amarela cercando o local.
Fui até a enfermaria e a Sra. Vanderbilt quase teve um ataque ao ver meu estado, mas pedi sigilo a ela como sempre — NY já havia me trazido problemas com os mortos antes, mas nada àquele nível. Não sei se é porque ela já era idosa, mas a desculpa dos meus supostos treinos de boxe sempre caíam como uma luva para ela.
Depois de meia hora, eu me sentia bem melhor com os curativos e remédios certos, mas ela deixou claro que eu precisava ir pra casa e descansar — e, claro, ir a um hospital. Mesmo que eu não estivesse pensando em fazê-lo, agradeci a ela e me preparei para a próxima resolução de problemas do dia.
Não liguei porque meu celular agora funcionava a hora que queria. Fui direto para o departamento da computação, na “biblioteca” que era uma sala com várias mesas compridas e computadores que parecia mais uma lan house. Sabia que gostava de passar o tempo aqui quando não estava comigo, então foi fácil enxergá-lo nos fundos da sala, com um headphone na cabeça e concentrado no que eu adivinhei ser algum jogo online.
Parei ao seu lado, mas ele continuou concentrado. Puxei uma cadeira e dei uma leve cutucada em seu ombro, o que o fez olhar pra mim e em seguida revirar os olhos.
— Não se pausa jogos online — ele murmurou, ainda olhando para a tela.
— Tenho um pedido importante pro meu hacker particular.
não disse nada por alguns segundos, e em seguida digitou rápido algumas palavras em algum tipo de chat e retirou o fone, fechando a tela.
— Você sabe que eu recebo multa por abandonar a partida, não é? Portanto, se for pra você me pedir pra baixar um dos seus livros de Anatomia na deep web, pode transferir o dinheiro pra minha conta.
— Preciso que você me dê informações — puxei a cadeira ao seu lado — Na verdade… Sobre a surra que eu levei na festa, eu sei quem foram os caras.
— Como é?! — ele sussurrou, se aproximando — Eu devia saber, você jamais esquece das coisas. Por que não me contou antes? Eles te assustaram tanto assim?
— Não foi esse o caso. Eu vou te contar, mas você precisa me prometer que além de não contar pra ninguém, não vai fazer nenhuma gracinha como hackear qualquer coisa que seja sobre eles. — ele revirou os olhos, mas apenas assentiu concordando — Tá legal… — suspirei — Eu tive uma briga com o namorado da , e…
— Você brigou com Park? — falou um pouco alto demais, e duas das únicas pessoas que não usavam fones enormes na cabeça se viraram para nós, com uma certa cara feia. Dei um soco de leve na perna de e dei um sorriso amarelo de desculpas — Desculpa, cara. Mas… Como assim?! O que te levou a isso? Ele ficou maluco só por causa do seu tombo com a ? Ele é bem mais medonho do que eu pensei…
— Não… Quer dizer… Não foi só ele. Tinha um cara chamado Ash, e mais dois…
— Ash?! Você está falando do Ash do esquema dos entorpecentes?
— Shiu! — alguém balbuciou ali perto e eu escondi meu rosto entre as mãos, me perguntando porque eu insistia em ter conversas reveladoras com em lugares fechados.
— Espera aí, , como você sabe da existência do Ash? Só quem sabe sobre ele já… Você sabe… — ele fez um gesto colocando um dedo no nariz.
— Não foi pra nada disso que você está pensando. E agora quer me contar sobre você? Como você conhece o Ash?
— Eu não o conheço necessariamente, o conheci em uma festa aleatória onde Bryan fez uma compra dele, eu só vi tudo, mas não achei relevante. Agora por que diabos você se meteria em uma briga com ele?! O que foi que você comprou?
— Eu não comprei nada, eu só… — suspirei e fechei os olhos por um minuto. Eu não sabia como explicar aquilo sem ter que falar tudo — Eu estava interessado em algo, foi isso. — dei de ombros — Mas na hora, o entrou no quarto e acabamos discutindo. E aí rolou a briga.
— Meu irmão, esse cara é maluco mesmo — balançou a cabeça e se recostou na cadeira — Olha o estado em que ele te deixou. Ah, mas eu juro que se ele aparecer na minha frente…
— Você não vai fazer nada, esqueceu o que conversamos? Fora que ele só deu o primeiro soco, o resto do trabalho foi concluído por dois caras aleatórios que estavam com Ash.
— Covardes! — rangeu os dentes, e tinha uma expressão realmente furiosa — Mas por que afinal foi toda essa discussão com para as putinhas de Ash fazerem isso com você? Tem realmente algo a ver com a ? , não me diga que você e ela…
— Ei, ei, tá maluco? A garota não tem nada a ver com essa história, eu nem a conheço, esqueceu? Acho que eu só fui… Exigente demais com os produtos, só isso. E já tinha rolado um estranhamento entre nós no primeiro dia da festa, nada que venha ao caso. — dei de ombros — Talvez ele já estava alto naquele ponto da festa, mas não importa. O que importa é que eu quero saber o que você sabe sobre o Ash.
— Puts, nada — levantou os ombros, dando uma risada baixa — Na verdade, acho que nem os amigos dele sabem alguma coisa. O cara é conhecido sob um nome falso e ninguém é interessado o bastante pra consultar a pauta de presença das aulas dele. Sei o que todo mundo sabe: que ele vende todo tipo de coisa. Existem até teorias sobre isso, tipo que ele traz as mercadorias do México ou que ele tem um trailer pra cozinhar metanfetamina, coisas assim.
— Não é exatamente esse tipo de coisa que eu quero saber — suspirei, tentando pensar em outro método — Ele tinha uma namorada? Sei lá, alguém que ele andava vendo…
— Não faço a mínima ideia, ele estava com uma garota diferente a cada festa que eu o via. Mas, espera, eu acho que… — ele juntou as sobrancelhas — Tenho quase certeza que já o vi com a Margot — ele olhou para os lados lentamente, como se estivesse falando algo proibido — Sabe a Margot Abbott? A garota que morreu semana passada? — um arrepio passou pela sua espinha.
era o tipo de cara que acreditava que falar o nome das pessoas mortas automaticamente era um ritual de invocação. Bom, pelo menos ele poderia ficar tranquilo à isso.
— Sei… — acenei.
— Por que o interesse nesse cara? Tá pensando em se vingar? Pode contar comigo!
— Claro que não — olhei-o como se fosse o maior absurdo de todos — Eu só acho estranho esse cara viver no anonimato em pleno século XXI.
— Isso é conveniente pro negócio dele — deu de ombros e começou a desligar o computador — Afinal, como iriam entregar alguém que ninguém sabe o nome? E fica fácil provar que não é ele, ainda mais com a parceria que ele tem com o por baixo dos panos, o que já é ameaçador para qualquer um por si só — ele pegou a mochila — Onde vamos almoçar hoje? Com todo esse circo sinistro que aconteceu no refeitório. — tremeu — Parece até coisa de fantasma.
Dei um sorriso de lado e caminhamos pra fora da sala. Ele mal fazia ideia.
O rosto de pairou no escuro, às vezes longe, às vezes perto. Estiquei as mãos para alcançá-lo, mas ele continuava se afastando, balançando, parecendo fazer uma brincadeira comigo. Sua imagem parecia borrada, como se eu estivesse vendo seu reflexo em uma poça, que se desmanchava a cada segundo mais. Ela sorria, e depois contorcia o rosto para chorar, em um loopin infinito. Por que eu estava vendo isso? O que estava acontecendo? Em vez de tentar escapar da escuridão, eu adentrava ainda mais nela, procurando aquele rosto, querendo tocá-lo, puxá-lo para mim. De repente o rosto no reflexo repuxa os lábios em uma linha dura, séria, os olhos pairando, fitando-me seriamente. Uma lâmina invisível surgiu rasgando sua garganta, em um corte fundo e preciso que fez o sangue ser jorrado para frente, matando-a sem ela ao menos dar um mísero grito. Um grito de horror escapou de minha garganta, e corri desesperadamente até a imagem dela.
Uma lufada de ar invadiu meus pulmões violentamente, e fui impulsionado para frente, abrindo os olhos e deparando-me com uma luz branca e forte. Desnorteado, eu ofegava como se tivesse corrido uma maratona, meu corpo mostrando os sinais do quão assustado eu ainda estava com a experiência anterior.
Virei para o lado, tentando respirar fundo e me acalmar, e abri os olhos novamente, dessa vez bem devagar. Eu não estava mais no estacionamento. Pisquei os olhos várias vezes para me certificar disso mas o som de uma porta sendo aberta e algo sendo derrubado me fizeram acordar.
— ! — reconheci a voz de , que me pegou pelos ombros e me deitou de barriga para cima — Meu Deus, cara você acordou! Enfermeira, ei! Tem alguém aí? Enfe…
Enfermeira?
Puxei a barra de sua camisa, fazendo-o olhar para mim, e me apoiando em seu braço para me sentar. Foi quando percebi que estava em uma maca, sem camisa, e algo me incomodou no nariz. Olhei lentamente para o lado, onde havia uma infusão de soro em meu antebraço esquerdo, ligado à um equipamento ao lado da minha cama. Coloquei as mãos no nariz e senti o cateter nasal indo desde atrás de minhas orelhas até o pescoço. Tentei retirá-los, mas eu estava lento demais.
— Ei, cara, tá maluco?! — retirou minhas mãos rapidamente — Você vai ficar bem quietinho aqui enquanto eu vou atrás de uma enfermeira. Ei, tem alguém escutando?! Eu quero…
— O que eu estou fazendo aqui? — puxei-o novamente, dessa vez falando entre dentes e fitando-o de maneira séria, quase desesperada. abriu a boca para responder, mas pareceu estar pensando melhor no que diria — Anda logo, , o que aconteceu?! Por que eu estou aqui?
— Você não se lembra de nada?
— Me lembro do estacionamento e da viga, e de que Ash estava… — interrompi minha frase antes que eu dissesse que também me lembrava de Margot, e de como ela quase o matou — Aliás, o que aconteceu? Como ele está? Você pediu ajuda?! Ele ainda deve estar lá, temos que ir lá! — comecei novamente a tentativa de retirar todas as infusões que haviam colocado em mim, mas fui parado por novamente, dessa vez com uma expressão até amedrontada.
— , isso foi há três dias atrás. Ele está vivo, vocês dois foram trazidos pra cá.
Pisquei, tentando absorver o que ele havia acabado de dizer. Aquilo não fazia sentido algum. Infelizmente, antes que eu pudesse refletir sobre toda a situação atual, uma mulher de branco entrou correndo pelo quarto, vindo até mim e colocando o estetoscópio em meu peito.
— Há quanto tempo ele acordou? — ela disse enquanto pegava um pequeno equipamento de medir pressão nos bolsos.
— Tem uns 5 minutos… Eu gritei, ele estava virado para o lado quando entrei, achei que… — respondeu, mas foi interrompido pela enfermeira:
— O senhor deveria ter apertado o botão. — ela disse ríspida, apontando para o grande botão vermelho no criado mudo ao lado da cama. deu um sorriso sem graça e de desculpou — Como se sente, Sr. ?
— Estou ótimo, nunca estive melhor. Inclusive acho que não preciso de mais nada disso… — apontei para os tubos e tentei me levantar, mas ela também não me permitiu.
— O senhor chegou aqui desacordado, com vários hematomas, uma costela quebrada, pontos abertos, com uma tentativa de colocar um nariz quebrado no lugar, lotado de aspirina no sangue e ficou em coma por três dias. Mesmo tendo feito todos os exames, sinto informá-lo que só sairá daqui com a permissão do médico. — ela recitou tudo isso sem ao menos olhar para mim, apenas anotando algo na prancheta de plástico em sua mão e colocando-a de volta na base da cama — Eu vou chamá-lo agora mesmo. Sugiro que não faça nenhuma tentativa de fuga, será pior para o senhor.
Ela disse e desapareceu pela porta. Fiquei estático, ainda com as palavras de pairando em minha mente, tentando desesperadamente me lembrar de algo. Aquilo não era possível, eu não poderia ter perdido a consciência por todo aquele tempo. Aquela sensação, o sufoco, o vazio… Eu ainda podia senti-lo, como se tivesse passado por ele há minutos atrás.
Olhei em volta, fazendo o possível para manter minha respiração a um nível regulado. Recostei-me de volta na cama, agora com as costas levantadas, e olhei novamente para — e de repente para algo que estava atrás dele.
— Cara, você sabe o susto que me deu? — ele voltou a falar, sentando-se na cama ao lados dos meus pés — Foi uma loucura chegar lá e ver você naquele estado, e o Ash também… Foi muito sinistro! E todas aquelas pessoas em volta, a ambulância, os bombeiros, e todo o caos para tirar…
— Quem mais sabe que eu estou aqui? — interrompi-o, com uma expressão séria.
— Acredito que toda NY. Seu fã clube aumentou drasticamente o número de membros. — ele apontou para as flores e cestas de chocolate espalhadas em um canto do quarto, que eu só reparava agora — Eles te acham um herói.
— Merda — murmurei, passando as mãos na cabeça. — Os meus pais… Diga que eles não avisaram meus pais.
— Eles bem que tentaram, mas o sistema da Advocacia é um lixo. Interceptei todo e-mail e ligação que mandaram, ainda respondi à Columbia com a assinatura eletrônica dos seus pais. Eles estão totalmente fora da situação.
— Valeu — falei, repuxando os lábios para dar o melhor sorriso que pude, mas eu estava muito grato. sabia exatamente o que aconteceria se meus pais ficassem sabendo daquele ocorrido; e não seria nada legal. — Você pode buscar água pra mim? De repente fiquei com muita sede.
— Eu vou se me prometer que não vai sair daí.
— Eu prometo. — ri, sendo sincero com a promessa.
Esperei que a porta se fechasse para começar a falar.
— O que a senhora está fazendo aqui?
Ela não me respondeu de imediato. Em vez disso, apenas se aproximou da minha cama e colocou a mão em meu rosto, de forma maternal. Geralmente eu conseguia ler seus olhos, mas hoje ela parecia querer esconder o que sentia, e deixar transparecer apenas o alívio.
— Meu querido… Estou tão, mas tão feliz de ver você acordado. Não sabe o quanto eu vivi na agonia durante esses dias.
Coloquei minha mão sobre a dela ainda em minha bochecha, acariciei-a e também devolvi seu olhar de compaixão. A sensação de tê-la por perto naquele momento deixou meu coração um pouco mais quente e um pouco menos desesperado.
— Como você está se sentindo? — ela perguntou enquanto se sentava ao meu lado. Retirou suas mãos da minha bochecha, mas ainda segurava minha outra mão.
— Estou bem, eu acho. Foi tudo muito rápido, ainda estou tentando entender o que aconteceu. — suspirei, coçando os olhos levemente. Tinha certeza que eu parecia mais cansado do que realmente estava — Onde estava esse tempo todo? Te chamei várias vezes e você não apareceu.
Ela desviou os olhos, envergonhada. A culpa era o próximo sentimento que ela agora deixava transparecer. A mão que segurava a minha estreitou o aperto, e vi seus olhos ficarem marejados quando teve coragem de me olhar.
— Eu não sabia… Eu não fazia ideia. Estou tão arrependida. — ela fungou com o nariz de repente vermelho, e abaixou a cabeça, acariciando minhas mãos — Eu deveria ter escutado, deveria estar aqui quando tudo aconteceu. O quanto deve ter ficado assustado, eu sinto tanto…
— Está tudo bem, vó. Não precisa ficar assim, não é a primeira vez que isso me acontece. Aliás, eu mal sei direito o que me aconteceu dessa vez.
— Você não se lembra de nada? — ela perguntou agora me fitando atentamente, ansiosa pela minha resposta. Não soube dizer o que ela queria ouvir.
— Você ouviu minha conversa com . Eu me lembro que tentei impedir Margot de matar Ash, ou , seja lá quem for. Mas ela estava diferente, parecia… Transtornada. Ela estava com tanto ódio, eu tenho certeza que ela o mataria se eu não estivesse lá. — enquanto eu contava, minha avó acenava com a cabeça, parecendo absorver cada palavra com muita atenção — O que está havendo, vó? Margot enlouqueceu tão rápido, eu nunca presenciei isso. Achava que os mortos ainda levavam um tempo até chegarem naquele comportamento, mas ela se lembrava de tudo, ela até sabia o nome de Ash. Tudo foi bastante estranho.
— Eu sei, eu entendo. Pra ela ter conseguido fazer você ficar nesse estado, e causar aquela calamidade, não consigo nem imaginar quais forças estejam atuando sobre essa garota…
Minha vó bufou indignada com a situação, e uma lâmpada acendeu em minha mente, e de repente fazia total sentido existirem forças estranhas atuando sobre Margot, ela jamais ficaria daquele jeito sozinha. Havia algo acontecendo, mesmo eu não fazendo ideia nem do que poderia ser.
Meu olhar distante chamou a atenção dela, que franziu o rosto, e não vi saída a não ser contar.
— Pode não ter sido Margot que fez isso comigo. — disse muito sério.
— Como assim? — Ela franziu as sobrancelhas. — Você não me disse que estava lidando com duas assombrações.
— Não estou. Quer dizer… Mais ou menos. Há algo acontecendo que estou tentando descobrir o que é.
Ela não se moveu e ficou séria, esperando que eu continuasse. Despejei tudo, desde que vi a aparição pela primeira vez na festa até a vez no bar. Tentei detalhar a forma como aquele fantasma era estranho, como a força que emanava dele era assassina e sombria, mas não tenho certeza se fui bem claro. As sensações eram complexas demais para colocá-las em palavras.
A posição dela havia passado de parcialmente relaxada para totalmente rígida. A mão que segurava a minha foi para o peito, e ela parecia chocada e confusa ao mesmo tempo. Ela se levantou, e, se fosse possível, parecia mais pálida do que o normal. Ela parecia estar desesperadamente tentando se lembrar de alguma coisa.
— O que foi? O que a senhora tem? — perguntei ansioso, visto que ela não relaxava uma vez sequer — Você já viu isso antes?
— Acho que sim. — ela sussurrou — E isso não é nada bom.
— O que ele é? Ou melhor, o que ele quer com a ? Como eu me comunico com ele…
— Você não vai.
— Como assim? — juntei minhas sobrancelhas. Ela voltou a se aproximar de mim e a pegar em minhas mãos, dessa vez com mais urgência e medo.
— Você vai se afastar dessa garota imediatamente e ele nunca mais aparecerá na sua frente. Isso não tem nada a ver com você, , e a sua segurança é a minha maior prioridade, então eu estou te implorando: fique-fora-disso.
De acordo com os meus cálculos, 98% das vezes que eu ignorava um conselho da minha vó, eu acabava me dando mal. Nunca havia tido motivo para duvidar dela, ela simplesmente sabia de tudo. Quando viva, ela levava o nome de Madame Kang e trabalhava como cartomante em algum lugar nas ruas de Seul. Fora essas informações e histórias de suas experiências com os mortos, eu não sabia muito mais. E mesmo a tendo conhecido apenas como fantasma, havia uma conexão inexplicável que eu sentia, e dessa conexão vinha toda a confiança que eu depositava nela, e em tudo que dizia — inclusive o fato de ser minha avó biológica. O conhecimento que ela tinha sobre o outro lado era extenso, porém não muito detalhado. O jeito que suas mãos me apertaram indicavam que ela estava aflita por mim, de uma forma que eu nunca a vi antes.
Apesar disso, não consegui controlar o sentimento que me tomou. Aquilo parecia errado, injusto, cruel.
— O que você está dizendo? — Soltei minhas mãos, explicitamente indignado — Você entendeu a parte de que ele com certeza vai matá-la? Ele só está esperando o momento certo, e eu não posso deixar isso acontecer.
— Quantas vezes preciso dizer? A sua missão é com os mortos, você precisa ajudá-los a seguir em frente, a encontrar a paz. Pessoas vivas irão morrer um dia, você não pode interferir nisso, pode se focar em ajudar essa garota depois da morte, e…
— Como é que é? — falei um pouco mais alto do que pretendia, e automaticamente olhei para a porta. Não demoraria muito para aparecer, mas eu não conseguia encerrar aquela conversa. Ela se afastou de mim mais uma vez, com um olhar frio que eu jamais vira — Tá dizendo pra eu deixá-la simplesmente morrer?
— Espíritos malignos existem, , e são impossíveis de lidar. Se algum deles está atrás dessa garota, podemos chamar de destino, pode acreditar que não é algo aleatório, não há nada que você possa fazer! Estou exigindo que você se afaste dessa menina agora mesmo e muito menos tente fazer algo, ou ele vai te matar também!
— O que pode ter feito pra um fantasma desses estar atrás dela? Eu não posso…
— Tudo que eu mais temia aconteceu! Desde que me comuniquei com você pela primeira vez há 18 anos atrás, durante todo esse tempo, fiz de tudo para você nunca encontrar nenhum deles! — ela bufou, ainda com uma expressão de medo — Por favor, me prometa que você não vai mais se envolver nessa história! Será que você consegue entender o perigo disso tudo? Já imaginou como seria se ele tentasse roubar a sua alma?
A lembrança da escuridão, do medo e do vazio vieram à minha mente, junto com a frustração da impotência que eu senti. “Acho que sim”, murmurei para ela, não me atrevendo a contar os detalhes da experiência. Eu estive lá por alguns minutos que se transformaram em três dias, e um calafrio atravessou minha espinha ao imaginar o que poderia acontecer se ele fizesse isso comigo de novo.
— Ela é só uma garota. — murmurou — Anda, quero que me prometa. Diga que não vai mais se envolver com esse assunto.
Olhei pra ela, em silêncio. Seu olhar era frio, mas passava uma sincera preocupação com toda a situação. Em contrapartida, tinha certeza do ardente contragosto que estampava meu olhar. Mesmo assim, me vi concordando com a cabeça, vendo-a desaparecer no momento seguinte quando e o médico adentraram na sala.
A luz forte que invadiu meu quarto naquela primeira manhã de inverno foi uma das primeiras coisas erradas do dia. Abri um pouco os olhos, me arrependendo no mesmo instante pela dor de cabeça tremenda que senti, consequência da noite anterior. Não era preciso levantar para constatar que eu estava completamente um trapo. De barriga pra baixo pude ver o tapete persa vermelho aos pés da cama, presente da minha tia Guida logo após saber da minha aprovação no vestibular. Ao menos eu havia acordado na minha casa.
Virei para o lado e vi as costas nuas de Jane, coberta com apenas uma parte do lençol em sua cintura. Os cabelos loiros estavam bagunçados em cima do travesseiro e ela parecia dormir profundamente. Suspirei e levantei da cama nu em silêncio para não acordá-la e fui direto para o banheiro, abrindo a gaveta e pegando meu kit de primeiros socorros, que diga-se de passagem, poderiam facilmente pensar que eu havia assaltado o estoque de um hospital. Tomei duas aspirinas e lavei o rosto, sentindo ainda mais desconforto com a água gelada.
Voltei ao quarto e coloquei uma calça de moletom e desci para a cozinha, ligando a cafeteira e pegando ovos, bacon, pão e tudo que eu pudesse achar para preparar o café da manhã. Não que Jane fosse exigente, é só que repentinamente parecia que eu não comia há dias.
— Bom dia! — Jane falou logo após o bacon começar a estalar. Ela usava uma camisa minha xadrez, que pegava até um pouco acima do joelho — Hmmm, ovos com bacon? Você é um clichê total.
— Me desculpa não ter comprado croissant. — nós rimos — Pode sentar, já está quase pronto.
— Você pode fazer sem pressa nenhuma, sr. Le Cordon Bleu. Eu preciso de um banho urgentemente. Essa noite foi quente demais! — ela me mandou um beijo no ar e entrou no banheiro.
Enquanto eu ouvia o chuveiro, terminei os ovos, peguei umas maçãs que eu tinha há algum tempo e o café, colocando-os à mesa. Quando eu começava a organizar as louças dentro da pia, a campainha tocou.
não pode estar aqui tão cedo, pensei. Não depois da noite que ele deve ter tido ontem. Mas se não fosse , quem mais estaria ali?
Ao abrir a porta, meu coração disparou.
— ? — falei, em um tom sinceramente surpreso.
Ela olhou pra mim e de repente desviou os olhos, o rosto corando até a raiz dos cabelos. Foi então que percebi que eu ainda estava sem camisa e minha calça de moletom estava posicionada em um cós tão baixo que era visível que eu só estava usando ela.
— Ah… O que faz aqui? Está tudo bem? — perguntei, tentando mudar o foco da situação constrangedora.
— Eu não sei. — ela deu uma risada forçada e deu de ombros — Talvez verificar que você não estava morto. Você resolveu ficar em coma depois de ter me pedido pra esperar, e foi tão… — ela mordeu o lábio inferior, e suspirou — Sabe quantas vezes tentei ligar? Quantos recados eu deixei? Eu fui ao hospital depois que você acordou, mas você não estava.
— Eu sinto muito. Meu celular parece que morreu no acidente.
Ela balançou a cabeça, ainda mordendo o lábio inferior, como se estivesse se impedindo de falar mais alguma coisa. Mal posso imaginar quantas perguntas teria.
— E como você está? Está sentindo alguma dor, desconforto, pelo menos dessa vez vai respeitar o tempo de repouso? — ela me olhou séria, mas o canto de sua boca se repuxou em um leve sorriso. Ela parecia realmente feliz em me ver vivo, e o formigamento estranho no meu peito me fez querer sorrir também, como um sentimento mútuo.
— Sim, eu estou bem. Está satisfeita agora?
— Não vou ficar satisfeita até conversarmos. — ela disse, voltando ao estado sério de novo, mas relaxado — Tem um tempo livre pra um café?
Ela me fitou como se tivesse tomado vinte segundos de coragem para dizer aquilo. A pessoa mais cismada de ser vista comigo estava agora me chamando para um café. E eu automaticamente quis cancelar tudo para aceitar o convite.
De repente a voz da minha vó invadiu minha mente, repassando toda a conversa que eu havia tido com ela naquele quarto de hospital. E depois a lembrança do rosto de no meio da festa, e a lembrança de seu rosto na escuridão. O emaranhado de imagens brigavam entre si, chocando-se, loucos para verem quem eu iria escolher seguir. levantou uma sobrancelha, ainda aguardando minha resposta.
— Na verdade…
— Com quem você está falando, ?
Oh, merda! Eu havia esquecido completamente que Jane estava aqui.
Não só isso, ela adentrou no ambiente, enrolada em uma toalha branca e secando o cabelo com outra menor. Ao vê-la, os olhos de se arregalaram por um breve momento e Jane se aproximou de nós na porta.
— Ora, ora, quem é essa aí? Você não me disse que tinha feito uma amiga nova, . Olá, muito prazer, sou a Jane. — ela estendeu as mãos para , que ruborizou e demorou alguns segundos para cumprimentá-la com um sorriso fraco.
Isso definitivamente não deveria estar acontecendo.
— Jane, essa é a… — minha voz saiu mais rouca que o normal, e eu olhava fixamente para — . Uma colega da faculdade.
— É muito bom saber que você fez mais amizades depois de se mudar, além do panaca do . — Jane riu — É um prazer te conhecer, . Quer entrar pra tomar café da manhã com a gente? Esse lindinho caprichou hoje! — ela pegou em meu braço e recostou a cabeça no meu ombro.
Nunca desejei tanto que a viagem no tempo fosse real. Meu olhar, cravado em , passava uma mensagem, que eu não fazia ideia se ela estava entendendo ou não: não é nada disso que você está pensando! Mas quem eu queria enganar? Não havia como interpretar errado em uma situação daquelas.
E eu não sabia por que diabos eu não queria que ela visse nada daquilo. Nunca me importei de ser visto com Jane, de deixar que as pessoas achassem e rotulassem do jeito que quisessem, mas de repente quis abrir a boca e despejar uma enxurrada de explicações, não que isso fosse mudar alguma coisa.
ainda parecia surpresa, mas conseguiu imprimir um sorriso de canto.
— Hoje não vai ser possível, eu preciso resolver um assunto urgente. — ela me fitou por um segundo ao dizer isso — Pelo visto você está melhor do que eu pensei, . Parece que eu não precisava me preocupar. Tenho que ir, então tenham um ótimo dia. — ela me olhou pela última vez antes de se virar e ir embora.
Dei um passo à frente automaticamente, pronto para ir atrás dela. Mas eu não podia. E nunca me senti tão idiota por isso.
Fechei a porta e Jane estava parada atrás de mim, de braços cruzados.
— Então agora você tem uma amiga? — ela tinha um olhar divertido, achando graça de toda a situação.
— Ela não é uma amiga. — murmurei, caminhando até a mesa. Eu não sabia o que era.
Antes de sentar, pude jurar ouvir Jane murmurar um “acho bom”.
Woodlawn. Woodlawn. Eu dirigia cegamente, como um louco, e tinha certeza de já ter ultrapassado dois sinais vermelhos. O celular novo parecia levar uma eternidade pra ligar e passar as configurações, quando finalmente pude ouvir a voz da máquina me ensinando a usar o controle de voz. Gritei sobre a localização de Woodlawn e foram mais segundos arrastados até que ela pesquisasse, ao mesmo tempo em que eu sentia uma gota de suor em minha testa. Pensei em parar até achar a localização exata do cemitério, mas eu simplesmente não sei se conseguiria. Eu dobrava o World Trade Center quando o telefone finalmente disse o endereço, no Bronx. Bufei e, como um maluco, derrapei o carro para a direita, cantando pneu, e me enfiei do outro lado da pista, recebendo várias buzinas e gritos, que duraram milésimos de segundos. Eu já estava muito longe.
Pelo horário, o portão de ferro batido já estava fechado, com algumas lâmpadas dos postes da entrada apagados, o que deixava ainda mais escuro. Havia uma neblina densa e bizarra no ar, deixando o ambiente ainda mais macabro. Estacionei o carro à uma longa distância, e em hipótese alguma eu poderia escalar o portão da frente. Já deveria estar em uns 10 graus e a temperatura só cairia mais à medida que as horas passassem, e me preocupei com a possibilidade de nevar, apesar do inverno ainda nem ter começado.
Eu jamais visitava cemitérios. Era um local que sempre havia uma remota chance de ter um fantasma, e eu não precisava necessariamente visitar túmulos para me comunicar com quem quer que seja. Mas invadir um cemitério ou a sala de provas da polícia, que diferença fazia.
Haviam câmeras principalmente na entrada. Dei a volta em um ângulo de 360o pelos muros, onde havia uma grande quantidade de árvores e muita moita. havia entrado de alguma forma. E tinha dado certo, visto que não havia nenhum carro de polícia ou pessoas correndo pra lá e pra cá.
Os arbustos atrás dos muros eram tão espessos que não era difícil escalar uma das árvores grossas para chegar ao topo. Caí de joelhos do outro lado, mas meus músculos estavam tão tensos que mal senti o impacto. O breu impossibilitava a minha visão, e eu não fazia ideia de como acharia . O túmulo de Margot era algo que eu definitivamente não procurei saber, e o cemitério era enorme. A cada minuto que passava minha garganta se fechava ainda mais, e me senti um idiota por não lembrar o número de de cor para poder usar o telefone.
Depois de andar alguns metros pelo leste do cemitério, avistei uma luz fraca ao longe. Parecia vir da boca de uma lanterna e estava se mexendo rápido e depois devagar, como se a pessoa estivesse em movimento. Não parei para tentar adivinhar muito e corri à plenos pulmões em direção à luz, torcendo para que Margot tivesse desistido da ideia do ataque.
A neblina ficava mais densa à medida que eu me aproximava da luz e aquilo me causava arrepios intensos, como se me dissessem o que estava por vir. Sem perceber, gritei o nome de , e imediatamente o pequeno foco de luz virou-se totalmente pra mim, me cegando por alguns momentos e me fazendo parar. A próxima coisa que senti foram braços passando em volta de meu pescoço, e um cheiro que estranhamente eu já reconhecia.
— ! — arfava, seu peito descendo e subindo tão rápido que parecia que havia corrido há pouco. Um soluço denunciava que ela segurava um choro.
Instintivamente, puxei seu rosto para olhá-lo melhor. Ela parecia totalmente apavorada, e estava com a testa molhada de suor. Usava um vestido com os ombros desnudos e tremia naquela noite gelada. Parecia assustadoramente pálida.
Ela rispidamente me soltou ao ver que eu encarava demais, parecendo perceber o que havia feito. De repente toda a sua postura estava de volta, e ela passou as costas das mãos embaixo dos olhos.
— Você está bem?! — perguntei, pegando em seu braço e me aproximando para enxergá-lo melhor. Olhei para os lados, atordoado com a pouca visão, e me preparando para Margot aparecer a qualquer momento — Tá machucada? Viu algo estranho? Por que você está assim…
— Eu estava… Eu… — ela começou, e sua voz era abafada na tentativa de segurar mais soluços — Como você chegou aqui? Como você sabia…
— Isso não importa agora! Você não deveria estar aqui! — olhei pra ela, dizendo entre dentes, minha irritação evidente — Achei que tínhamos combinado que essa não era uma boa ideia! E o que raios aconteceu com você…
— Eu não sei! Eu estava na lápide de Margot… Aí… — ela ficou com os olhos perdidos, e meu coração de repente se apertou. Peguei a lanterna ainda acesa em sua mão direita e rolei a luz para averiguar o ambiente rapidamente.
Bem atrás dela, havia uma estátua imensa de uns 6 metros de pedra branca, com a forma de um anjo. A pintura estava lascada e as últimas folhas do outono ainda estavam espalhadas pelo chão, e um vento gélido as empurrou para longe. O silêncio era um tormento, gritava no fundo de minha mente. Algo de bom não iria acontecer se continuássemos ali.
— Temos que sair daqui agora mesmo. — falei, e virei o corpo para andar na outra direção.
— Espera…
— Se disser algo sobre terminar seu serviço, eu nem sei o que faço com você, ! Vamos sair daqui antes que alguém nos pegue!
— Serviço? — Ela juntou as sobrancelhas — Não é nada disso que você tá pens….
Eu não podia ouvir suas explicações. Peguei em sua mão e a lanterna e a puxei para a direção que eu me lembrava do muro. Meus músculos ainda estavam tensos e talvez eu apertasse demais a mão dela, mas nada se compara à rigidez que senti ao ouvir aquele sussurro na escuridão.
— Não tão rápido, . — a voz de Margot soou surpreendentemente macia e abafada, tão diferente da voz arrastada que eu ouvira no banheiro.
Abruptamente, virei meu corpo para trás. Não havia absolutamente nada ao redor, mas cada nervo do meu corpo estava alerta. Ouvi mais uma risadinha e mais um sopro frio, e desloquei para trás de mim, não soltando sua mão em momento algum.
Margot estava brincando comigo. Desde o início sabia que eu viria atrás de , e queria machucá-la na minha frente. Eu movia a lanterna por todos os lados, mas ela não aparecia, e ficava repetindo palavras e risadas que eu não conseguia compreender, com uma voz que não era mais dela. “Você não pode escapar de mim”
“Você não tem vergonha de se fazer minha amiga agora que estou morta?”
“Você permitiu que ele fizesse isso comigo”
“Me matou igual fez com seu irmão, com seu pai, com mais quem, ? Quem será o próximo da sua lista? Amiga…”
Que merda de papo era aquele?
— , o que foi? — sussurrou, e parecia estar tremendo mais. Aquelas palavras não eram direcionadas à mim, e Margot não aparecia, então o que diabos era todo aquele jogo?
Em um milésimo de segundo, soltou de meu aperto e gritou quando teve o corpo arrastado pelo chão e lançado de costas à estátua do anjo, que tremeu com o baque e a fez cair de bruços. Imediatamente corri em sua direção, mas um puxão invisível me fez tombar para trás e também cair. Na mesma hora, Margot se materializou a minha frente, com um sorriso macabro no rosto.
— Filha da puta! — resmunguei, tentando me levantar — O que você pensa que está fazendo?!
— Estou fazendo o que ninguém fará por mim. Ou você pensa que vou ficar sentada olhando a vida de todos aqueles que colocaram Ash propenso a me assassinar seguirem seus caminhos felizes? A resposta é não. — sua voz ficou baixa e ela aproximou o rosto do meu — Vou te dar uma última chance, . Você não tem nada a ver com isso, então sugiro que…
Só que ela não terminou de falar pois meu punho a impossibilitou. Acertei seu nariz em cheio, fazendo-a gemer e cambalear pra trás, e atingi seus tornozelos, o que a fez cair finalmente. Isso me daria tempo de chegar em , mas não atrasaria Margot por muito tempo.
Me abaixei ao lado de , que ainda estava no chão porém parecia acordada.
— Ei! , olha pra mim! Você está bem?! — eu ofegava, desesperadamente pensando em uma forma de como me livraria de Margot para sairmos dali — Fala comigo, você se machucou?
— … — ela grunhiu, tentando se levantar e colocando as mãos na cabeça, como se sentisse dores — O que aconteceu? Você ouviu… As vozes… Tinham vozes…
Minha garganta ficou seca, e desviei os olhos. Aquela era uma variável que eu não esperava.
— Temos que sair daqui agora mesmo, depois nós…
— Você não vai a lugar nenhum! — ouvi o grito de Margot na mesma hora em que ela puxou a gola do meu casaco, me jogando para trás violentamente.
Tudo a minha volta estava girando. Eu havia rolado como uma bola por pelo menos uns quatro metros, e tenho certeza de ter ouvido chamar meu nome. Antes que eu pudesse me recompor, senti um chute direto no abdômen, e depois um punho forte direto no olho.
— Primeiro será você então… — Margot murmurou enquanto apertava novamente meu pescoço, dessa vez com tanta força que eu poderia levar a sério o lance de me matar — Depois eu me resolvo com a garota, e então Naomi, Ash, todos eles…
Senti o ar passar cada vez menos pela minha glote, e meus olhos quase saltaram das órbitas. Movi uma das mãos para o pescoço de Margot, tentando causá-la algum dano para que afrouxasse o meu aperto, mas pelo visto estava sendo sem sucesso. Ouvi a voz de mais uma vez, dessa vez se levantando por completo e correndo até mim.
— Não… — tentei falar, gritar, gesticular para que ela não chegasse perto.
Mas ela não pareceu me entender e continuou em frente, com uma expressão assustada no rosto. Eu sabia que ela não podia ver Margot, mas deveria ser desesperador ver uma pessoa prestes a morrer de asfixia sozinho. Assim que ela se aproximou de mim, uma das mãos de Margot soltou do aperto em meu pescoço e brevemente tocaram , fazendo-a ser lançada novamente para trás, desta vez à pouco metros. Pelo seu grito, ela havia batido em algo. Uma raiva aterradora me tomou e puxei a outra mão de Margot, tirando do meu pescoço e jogando a testa em seu nariz, empurrando-a para o lado, e depois dando mais um soco, e depois mais outro. Ela gemeu e tossiu, e lhe incitei um pontapé no tórax.
— Estou te avisando… — disse entre dentes, meu punho lhe dando mais um golpe no rosto — Se chegar perto dela de novo, vou te mandar direto pro inferno!
Ela parecia fraca, mas mesmo assim deu um sorriso irônico, mostrando dois dentes quebrados que logo voltariam ao normal.
— Seu burro — ela gargalhou como uma bruxa — Ele vai atrás dela! — ela riu e tossiu logo em seguida — E ele… Com ele você não…
Ela tossiu mais uma vez, dessa vez com mais violência, e simplesmente desapareceu no ar.
Sem perder mais nenhum segundo, levantei rapidamente e me abaixei ao lado de , pegando seu rosto em minhas mãos. Havia um corte aparentemente superficial acima de sua sobrancelha esquerda que sangrava, e ela parecia estar um pouco grogue por causa do segundo impacto. Seus olhos se abriram lentamente e sua respiração estava pesada e profunda.
— . Ei. — falei devagar, sussurrando, afastando seu cabelo do rosto — Você pode levantar? Fala comigo… Temos que…
A ponta de seus dedos foram direto para minha boca, calando-me. Sua cabeça se levantou e pude sentir sua respiração quando ela tocou sua testa na minha, ainda de olhos fechados. Senti uma queimação em minha pele e meu coração desestabilizar.
— Você… está bem? — ela perguntou, se afastando do toque por um breve momento — Você estava… Eu não sei…
— Eu prometo que vou te explicar tudo. Agora por favor, me diga que consegue levantar, nós precisamos urgent…
Como uma série de coincidências ruins, uma sirene começou a apitar e luzes vermelhas e azuis estavam piscando ao longe. Não, não, não, não. Xinguei raivosamente ao observar um par de lanternas correndo ao longe, se movimentando aleatoriamente, procurando o local da confusão. Parecia que toda a algazarra havia finalmente atraído a atenção dos coveiros. Era tudo que eu não precisava.
pareceu perceber e imediatamente se levantou, ainda que cambaleante.
— Ai meu Deus… — ela arfou, olhando desesperadamente para os lados — … O que a gente faz?
— Faça o que eu disser! Vamos! — puxei-a rapidamente pela mão pela direção que eu me lembrava do muro.
O problema não era apenas escalar o muro para sair do cemitério. Os coveiros poderiam não nos pegar, mas a polícia com certeza iria, visto que eles estavam dirigindo em círculos ao redor do local. Puxei para a escuridão da base do muro há poucos metros da estátua, e mesmo que eu não fazia ideia de qual direção sairíamos do outro lado, não tínhamos outra escolha.
— Ah não… — ela murmurou, engolindo em seco olhando para a altura do muro, que era maior do que o da Columbia.
— Eu vou primeiro. — falei, olhando firme em seus olhos, tentando passar confiança — Vamos pela árvore e saltamos do outro lado.
— Nunca subi em uma árvore. — ela olhou para cima e pude ver o medo que ela sentia.
— Você vai conseguir. Como da outra vez. — coloquei a mão em seu ombro, e senti o formigamento estranho de novo, fazendo-me soltá-la depressa. Ela concordou com a cabeça e eu comecei a escalada.
Visto que não era a mesma árvore que eu havia subido na chegada, essa estava mais lisa e difícil de alcançar o topo. Depois de ter ralado as palmas das mãos umas duas vezes quando quase escorreguei, consegui chegar ao ápice da árvore e pular para o muro, que era mais espesso nesta parte. Olhei para de cima, esperando-a, olhando para os lados nervoso com a iminência da outra ronda da viatura, que parecia estar do outro lado.
Apesar de nunca ter feito aquilo, se saiu bem. Conseguiu chegar ao alcance de minhas mãos bem mais depressa do que eu esperava, e a puxei para o muro, onde ela se sentou, com os olhos fechados e respirando pesadamente. Independentemente do seu medo de altura, ela havia chegado bem e com apenas os machucados que havia ganhado lá embaixo.
— Eu vou pular e te seguro. — disse mais uma vez, em voz baixa, e ela apenas concordou com a cabeça sem abrir os olhos.
Pular daquela altura não foi tão difícil, e dessa vez consegui cair de forma mais digna. O problema foi que o barulho pareceu ser mil vezes mais alto no asfalto por conta do silêncio ensurdecedor da rua parcialmente iluminada por postes amarelos e sem uma alma penada, apenas o barulho da sirene que se aproximava cada vez mais. Sussurrei para pular, e a vi concordando com a cabeça novamente, passando as pernas para o outro lado do muro, finalmente abrindo os olhos.
Ela respirou fundo e pulou direto para os meus braços estendidos. Dessa vez a segurei firme, sem cair e coloquei-a no chão, xingando aquele formigamento persistente que eu não sabia da onde vinha.
Não dava tempo de perguntar se ela estava bem, apesar de que seu semblante denunciava novamente que ela queria vomitar. As sirenes estavam altas, as luzes se aproximavam cada vez mais e o barulho do impacto dos meus pés havia feito os policiais pisarem no acelerador.
Olhei em volta. Não era o lugar onde eu havia escalado na chegada com toda certeza, e a única forma de encontrar meu carro seria contornando todo o muro do cemitério até o portão de entrada, o que seria extremamente suspeito se fôssemos pegos e não havia tempo para encontrar um esconderijo.
Na verdade, não havia tempo pra nada. Tentei correr alguns metros com , mas não éramos mais rápidos do que um carro. Sem chance de não sermos colocados na viatura se fôssemos pegos naquela situação em meio a uma correria, e não estava nas melhores condições físicas pra isso.
Por fim, havia um jeito. Impopular, eu diria.
— Para! Não vamos conseguir. — puxei seu braço e ela juntou as sobrancelhas, usando sua expressão normal quando queria dizer que eu estava maluco.
— O que você quer dizer? Eu realmente não quero dormir em uma cela… — ela sussurrou entredentes, olhando nervosa para os lados.
— Lembra que eu disse pra fazer o que eu disser? — ela concordou com a cabeça, ansiosa — Preciso que você fique parada.
Foi nessa hora que eu a beijei.