Sinopse: Ela perdeu tudo o que tinha e se encontrou em cartas. Muitas cartas. Todas com remetente, mas sem destinatário — até chegar em suas mãos. Será que uma desconhecida do século XX seria quem a ajudaria a tomar as rédeas da sua vida?
Gênero: Drama
Classificação: 16
Restrição: Os personagens Rosa, Francis, Josh são fixos.
Beta: Natasha Romanoff
“3 de outubro de 1921.
Ao longo desse ano, aprendi a não sentir. Vejo seu vulto me cercando depressa, sinto seu braço se erguer em minha direção, ouço o barulho do contato rígido da sua palma em minha pele, mas não sinto nada. Me olho no espelho, vejo as marcas e não consigo nem ao menos chorar. Não consigo denominar isso como força — aliás, essa é a última coisa que sinto ter dentro de mim. Ele me tornou oca. Suas agressões me tornaram uma pessoa vazia, livre de qualquer sentimento, qualquer dor. E isso pra mim não é força… É desistência. Desisti de viver. Apenas sobrevivo por meus filhos, para que eles nunca precisem passar o que eu passo.
Rosa”
— Happy hour hoje, galera? — ouviu gritar do outro lado do escritório. Era sexta-feira, fim de expediente. Ouviu 4 dos 5 funcionários que ainda restavam na empresa concordarem e sorriu triste. Seria mais uma confraternização que ela não participaria. Seu namorado, Josh, estava viajando a trabalho e não gostava quando ela saía com os amigos sozinha. Tinha ciúmes, era compreensível… Né? Ela gostava de pensar que sim. A última vez que tentou sair sem ele com seus amigos foi uma guerra e, desde então, fazia absolutamente tudo para evitar que se repetisse. Não custava esperar que ele retornasse.
— Eu passo dessa vez, — falou, enquanto ajustava a alça da bolsa nos ombros e fechava seu notebook. — Hoje sou eu, um bom vinho e minhas séries.
— Dessa vez, ? — Riu irônico. — Dessa e todas as outras vezes. Que dia vou ter a honra de assistir Walsh sentada ao meu lado numa mesa de bar, tomando uma cerveja?
— Na próxima, prometo! — Ela deu um largo sorriso, que logo se desfez quando olhou para seu amigo, . Ele sabia por que não estava indo. Sabia por que evitava a todo custo qualquer evento social em que Josh não estivesse presente. E ele odiava Josh com todas as forças do seu ser.
— Na próxima, claro! — exclamou com ironia e bufou. Se não poderia contar com o apoio do melhor amigo nessa situação, estaria perdida.
— Vou indo, pessoal. Divirtam-se, bom final de semana! — E saiu apressada pela porta. Seu ônibus era pontual. Passava às 18h02 e vinte minutos depois estava no conforto de seu lar.
morava sozinha em uma casa próxima ao centro, herança da família que nunca conheceu. Ela e sua mãe eram sozinhas e esta nunca falou muito sobre seu passado ou qualquer parente vivo ou morto. O que já era solitário, ficou ainda mais quando sua mãe faleceu de câncer no último verão. Agora, a única lembrança ou laço que tinha com sua família era aquele velho imóvel. Talvez por isso fosse tão apegada. Talvez por isso já tivesse negado vendê-lo (por consideráveis quantias) todas as quatro vezes que um investidor bateu em sua porta. Se sentia segura ali, como se seus ancestrais, que nem ao menos conheceu, a protegessem de alguma forma.
Jogou sua bolsa de qualquer maneira no sofá e correu para tomar um banho. Mesmo triste de não comparecer ao happy hour do escritório, sabia valorizar esses momentos à sós consigo mesma. Adorava botar seu pijama, pedir uma pizza grande só para si e afundar no sofá confortável assistindo televisão com uma taça de vinho barato na mão sem ninguém para encher o seu saco.
Já estava no quarto episódio da nova temporada da série que assistia, quando sua mente deu um estalo.
— ROSA! — gritou empolgada, batendo palmas. Correu ao seu quarto, abriu o armário com uma alegria acima do considerado normal e de lá pegou um baú de madeira.
Tinha encontrado a caixa em uma das milhões de faxinas que passou a dar na casa desde que sua mãe faleceu. Aparentemente, uma música e uma vassoura acalmavam sua mente. Varrendo um cantinho de seu quarto, percebeu que a madeira do rodapé estava solta. Quando se abaixou para colocá-la no lugar, viu um buraco e, curiosa, colocou seu braço ali. Não pergunte por que, pois ela nunca vai saber explicar o que a levou a querer enfiar seu braço em um buraco desconhecido, no canto de um quarto em um apartamento velho. Mas nunca se arrependeu do feito! Encontrou escondido no rodapé esse baú empoeirado e correu para descobrir seu conteúdo.
Eram cartas… Inúmeras cartas. Lendo, descobriu que era quase como um diário. E essa passou a ser sua maior distração quando o ócio batia em sua porta. As cartas eram datadas da década de 1920 e assinadas por Rosa. Para que sua diversão não acabasse rápido, prometeu que leria no máximo uma por semana. Da descoberta até então, já tinham sido cerca de doze e ela já era completamente apaixonada por Rosa. Pela sua maneira de escrever, pela sua história de vida, por sua garra e seu amor aos filhos. Sentia-se até amiga, se Rosa permitisse, onde quer que ela estivesse, ser chamada assim. descobrira algumas coisas com a leitura: ela era casada, tinha três filhos e tinha como paixão cozinhar. Encontrou inclusive algumas receitas no meio de todas as folhas e já até se atrevera a replicar: o bolo de laranja da Rosa era o melhor!
Mas se sentia péssima por outro lado: Rosa era agredida constantemente por seu marido. Vivia em um relacionamento abusivo que já a fizera chorar 2 ou 3 vezes enquanto lia seus relatos. A sensação de impotência ao ler as cartas era absurda e a curiosidade só aumentava de descobrir quem era aquela mulher. Será que poderia ser da sua família?
Levou o baú para a sala e se sentou confortavelmente de novo. Apoiou a taça de vinho no braço do sofá e pegou, aleatoriamente, mais uma carta. Com a correria do dia a dia, tinha se esquecido de Rosa e aquela seria a primeira carta que leria em um mês. Rindo incrédula de pensar que conseguiu se afastar disso por longas quatro semanas, começou a leitura.
“9 de janeiro de 1921.
Miguel me pediu desculpas hoje. De joelhos! Com direito a lágrimas. Fiquei feliz. Acho que todo mundo tem direito de errar, não é? Eu o perdoei, é claro. Ele é pai dos meus filhos e não posso permitir que algo assim abale o nosso casamento. Preciso avisar Francis sobre isso.
Rosa”
suspirou. Não acreditava que tinha gastado sua carta da semana com um relato de 4 linhas. Não teria problema quebrar a regra dessa vez, certo? Quem era Francis? Quando levou a mão ao baú novamente, seu celular tocou. Salva pelo gongo, Rosa!
Sorriu ao olhar a tela do aparelho.
— Amor! — falou apaixonada, enquanto arrastava o baú para o lado com a perna e encostava o corpo no sofá. — Como você está? Que saudade!
— Oi, amor. Vou bem e você? — Josh respondeu desanimado. Qualquer um que não o conhecesse talvez achasse que toda aquela ligação fosse por completa obrigação. Mas não .
— Eu vou bem também. Hoje li mais uma das cartas que comentei com você aquela vez, lembra? — ela falava empolgada enquanto tomava um gole de vinho. — Josh, você não tem ideia! Fico cada dia mais curiosa com essa história toda. Hoje o marido da Rosa pediu perdão pra ela, você acredita? Aquele canalha. Tomara que um dia eu leia alguma carta em que ela conte que está saindo de casa.
— Ah, maneiro. Te liguei para dar boa noite mesmo. Vou sair com uns amigos hoje para comemorar o sucesso do projeto, então talvez você não consiga mais falar comigo. Conversamos depois, tudo bem?
— Ahn… ok… Divirta-se, eu acho.
— Obrigado. Tchau, !
— Boa noite, Josh. Eu te amo! — E não obteve resposta. Suspirou. Devia estar com pressa para sair.
Esse era um dos motivos de não gostar do namorado de . A via com frequência triste por atitudes de Josh e já tinha presenciado algumas atitudes grosseiras do homem com a amiga nas pouquíssimas vezes em que se viram. Tentou alertá-la várias vezes, mas a resposta de era sempre a mesma: “você não o conhece direito, nunca deu a oportunidade. Não tire conclusões sobre alguém com fatos isolados”. desistiu. Era aquele típico caso de ver com os próprios olhos para crer. Enquanto não enxergasse sozinha como o namorado era um lixo, de nada adiantaria.
A ligação fez com que esquecesse sua animação com o antigo baú de Rosa. Colocou sua taça quase vazia de vinho na mesa de centro e foi em direção ao seu quarto. Sentiu o peso em seus ombros quando deitou na cama e percebeu que estava realmente cansada. Se aconchegou em seus travesseiros e, antes que pudesse fechar os olhos, sentiu seu celular vibrar na mesinha de cabeceira. Sorriu esperançosa. Poderia ser Josh mandando alguma mensagem. Pegou o aparelho em um reflexo rápido e viu toda sua animação se esvair com a leitura de uma só frase: Nova notificação de Jones. Sabia o que era. E sabia que doeria, mesmo que gostasse de tentar se convencer que não. Ao abrir a conversa do amigo, viu o que esperava: uma foto com seus colegas de empresa, todos meio jogados em cima um dos outros, com grandes canecas de chopp na mão. Faziam caretas e sorriam. Na legenda da imagem, uma pequena mensagem: “Queríamos você aqui, . Na próxima, certo? Beijos”. Suspirou triste.
— Na próxima, .
— Olha se não é a certinha mais certinha desse mundo! — exclamou ao ver entrando no escritório na segunda de manhã. A garota recebera mais fotos, áudios e ligações (conforme o álcool ia entrando no organismo dos amigos) ao longo da madrugada. Sorriu.
— A certinha teve uma noite incrível de sono na sexta, obrigada! Eu estava precisando. — se sentou na cadeira vazia ao lado do colega e bebericou um pouco do café da xícara de .
— Hey! Já ouviu falar de educação? Pedir? — ele falou com um semblante sério que não enganaria o maior dos ingênuos.
— Já. Com quem merece. Mas você, sinto que é quase uma obrigação sua me fornecer café depois de me despertar do meu sono 56 vezes me mandando mensagens.
— Não seja injusta, não foram 56. Acredito que chegamos em 44, no máximo. — Ele riu. — Mas, … Sério agora. Vamos sair mais com a gente. Sentimos a sua falta.
— Obrigada, . — Ela sorriu sincera. — Na próxim…
— Na próxima você vai, eu sei. É sempre o mesmo discurso, Walsh. Posso ser sincero, então? Tentei apelar pra educação, mas acho que somos íntimos o suficiente.
— Ahn… Posso não querer sua sinceridade? — Ela sorriu nervosa, sabendo que não seria uma opção. Já tinha entendido tudo. Ela não estar presente + álcool no sangue do amigo era a receita perfeita pra desabafar tudo o que sentia para . Poderia apostar seu próprio fígado no mercado de órgãos.
— Não. — Ele ajustou a coluna e olhou para amiga. — Você tem medo do Josh, . Isso não é normal. Não é normal ele não deixar você beber uma cerveja com seus amigos numa sexta à noite. Ele nem na cidade estava, por Deus!
— , não começa!
— Não, . Começo sim. Você acha mesmo, de verdade, que nessas viagens a trabalho ele não sai pra beber? Por que diabos ele pode e você não?
— Eu… — Ela não teria resposta pra essa pergunta. Lembrou da ligação que recebeu na sexta-feira… Josh havia realmente saído. Nunca tinha parado pra pensar, na verdade. Mas não era hora disso, estava passando dos limites. — Você está passando dos limites — repetiu a frase que ecoou em sua cabeça. — Josh é um ótimo namorado, só prefere que ele esteja ao meu lado quando saímos e não tem absolutamente nada de errado nisso. E, sinceramente? — Olhou o relógio e viu que já eram 8:10. — Estou dez minutos atrasada para bater o ponto. Bom trabalho, . — E saiu como um furacão para iniciar o seu dia. Dia esse que passou voando. era arquiteta em um escritório razoavelmente famoso na cidade e sempre que voltava de um fim de semana em que não levava trabalho pra casa, se atolava. Reunião para aprovação de projeto, reunião com novos clientes, detalhamento, visita em obra… Ela só queria chegar em casa. Pensar nisso lhe deu um quentinho no coração. Hoje era o dia que Josh retornava e ele iria direto ficar com ela. Como ela morava sozinha, seu namorado ficava constantemente em sua casa, viviam praticamente uma vida de casados e, sinceramente? Não era nada ruim!
Ao fim do dia, pegou o seu mesmo ônibus de sempre, mas, dessa vez, conseguindo um lugar para se sentar. O universo estava sendo muito generoso com ela! Aproveitou o conforto que só um banco vazio de ônibus no fim do expediente proporcionava e iniciou uma conversa com Josh:
“Hey, lindo. Ansiosa pra você chegar! Quer comer alguma coisa diferente?”
Apertou o enter e viu uma resposta chegar mais rápido que o normal.
“Não mais que eu! E adoraria comer o seu strogonoff. Se não estiver muito cansada para cozinhar, claro! Sei como seu trabalho é complicado.”
sorriu confusa. Não que ele a tratasse mal, longe disso, mas ele estava muito… Carinhoso? Não sabia nem como denominar, mas aproveitaria. Depois de um dia extremamente cansativo, um carinho do seu namorado era tudo que precisava.
“Nunca estou cansada para te agradar. Espere um strogonoff quentinho quando chegar! Te amo!”
Enviou a mensagem e nem esperou resposta. Se levantou, estava chegando em casa. Um sorriso moldava o seu rosto de orelha a orelha. Seus amigos definitivamente não conheciam Josh.
— E é isso. Não aceito não como resposta, tudo bem? — falava cada palavra como se tentasse explicar de onde os bebês vinham para crianças. Aquilo era importante pra ela e nada poderia dar errado.
— Por mim tudo bem, . Se vai te fazer feliz, eu topo — disse no seu já conhecido tom compreensivo. Ela não poderia desejar um amigo melhor.
— Não espere de mim a mesma animosidade do . Não gosto do Josh e não acho que sentarmos em uma mesa de bar vai mudar alguma coisa — dizia enquanto brincava com o canudinho de metal da sua bebida. Estavam os três na cozinha do escritório durante o horário de almoço.
— Pega leve, . Estamos fazendo isso pela , certo? — disse e quis apertar suas bochechas por isso. Ele não cansava de ser fofo?
— Tá, tá. Por você, certinha. E só por você. — Ele levantou, jogou fora a embalagem do seu almoço e se direcionou à porta. — É só me falar data e horário. Mas não espere muito de mim, tudo bem? — E saiu sem olhar pra trás.
— Pff… Já me arrependi e o encontro ainda nem aconteceu. Não sei mais o que fazer com o . — desabafou com o amigo, que continuava ao seu lado.
— Tente entender o lado dele também, . Ele se preocupa com você, assim como eu me preocupo.
— Vocês não têm nada com o que se preocupar gente, por Deus! Josh é uma ótima pessoa, só é diferente do que vocês estão acostumados. E isso não é uma coisa ruim — ela falou sem paciência, apoiando as mãos na mesa e erguendo o corpo para se levantar da cadeira, quando a interrompeu, pegando com calma em seu braço.
— Ei, não é pra ficar brava. — soltou o braço de quando viu que a amiga olhava diretamente para sua mão. Continuou, desconcertado. — Somos seus amigos e estamos aqui por você, tudo bem? Vai dar tudo certo.
— Obrigada, . Mesmo. — Saiu, não sem antes dar um beijo na bochecha do amigo. Tinha sorte em tê-los, apesar de tudo.
A semana passou rápido. O encontro entre os quatro aconteceria no sábado e não podia se conter de alegria. Josh estava com um ótimo humor desde que chegou da viagem e concordou com certa facilidade em sair com os amigos da namorada.
— Nos vemos amanhã, amor. Beijos! — desligou a ligação e seguiu para o sofá. Era sexta e ela estava novamente sozinha em casa, mas dessa vez era diferente. Era por escolha própria. Josh havia chamado para dormir em sua casa, mas ela negou. Hoje era um daqueles dias em que ela verdadeiramente queria sentar no sofá, curtir sua própria companhia e tomar um vinho. O baú já estava devidamente posicionado na sua frente e a taça ao seu lado. Era hora da Rosa!
“6 de abril de 1921
Precisei usar blusas longas hoje. Miguel já se desculpou, só que as marcas em meu braço não sumiram. Mas não deixaria de sair por isso. Ainda mais em um dia especial como hoje! Eu sempre amei as quermesses da cidade, não perderia por nada! Encontrei Francis já no centro, próximo à festa. Miguel não poderia sonhar que ele foi a minha companhia. Já não gostava que eu saísse sozinha, imagina com um homem.”
Parou a leitura por um segundo e prendeu o ar. Depois de pensar um pouco, balançou a cabeça e afastou os pensamentos. Rosa era fisicamente agredida, céus. Ela estava longe dessa realidade.
“Foi uma tarde bem agradável. Francis me contou um pouco mais sobre seu amor secreto pelo melhor amigo de seu pai, o que me causou gargalhadas. Aquela, claro, seria uma conversa que morreria ali. E eu sentia muito por Francis. Infelizmente, não vivemos em uma sociedade onde ele possa abrir esse sentimento dessa maneira. Pergunto-me se no futuro esse momento vai chegar. Espero que sim!
Enfim, estou indo dormir com o coração tranquilo. Foi um bom dia.
Rosa”
O coração de ficou igualmente sereno lendo aquela carta. A cada uma que lia, gostava mais de Rosa. Era uma mulher tão à frente de seu tempo, querida, carinhosa, dedicada aos filhos, talentosa… Como queria ter a conhecido. Quase quebrou sua regra com o baú, mas estava com tanto sono que conseguiu resistir. Guardou toda a pequena bagunça que fez na sala e foi se deitar. Amanhã seria o grande dia!